terça-feira, 18 de janeiro de 2011

VARANDA EQUATORIAL

Após a estrondosa desistencia na cadeira de Anatomia Descritiva,impunha-se comunicar a triste ocorrência ao Pai António ,que esperava ansioso em São Tomé,a chegada do habitual telegrama,portador de notìcias frescas.Tinha-me saìdo no exame pràtico feito no cadàver,a artéria caròtida,o que me permitiu recorrer à ancestral mnemónica«Teresa minha menina...»e fazer uma boa prova,classificada pelo Dr Simões de Carvalho,com 17 valores,o que daria contra minha vontade expressa, uma boa informação ao velho Prof Maximino Carreia!A partir daí o destino estava traçado!Depois de um elogio público á minha prestação práctica,veio a total desilusão de uma laringe mal estudada e um fígado quase cirrótico!A baralhada foi de tal ordem que o velho e saudoso Professor se convenceu que eu estava na ressaca de umas valentes anfetaminas!É evidente que não desmenti,já que me parecia a saída mais ou menos honrosa para poder desistir do exame,não sem que antes tivesse levado uma tremenda descompostura,por me ter drogado!
A resposta á minha confissão telegráfica da triste desistência não se fez esperar:«Embarca primeiro avião,traz anatomia e esqueleto!»Não havia qualquer alternativa,mesmo que para tal tivesse que abdicar do mínimo de roupa necessária.O peso dos livros,do esqueleto,da desilusão e da vergonha,perfaziam os 20 kilos que tinha direito a levar no avião!Desembarquei em São Tomé,com a roupa que tinha no pêlo e a esperança de meia dúzia de dias de férias,apesar de tudo merecidas.Os abraços saudosos,uma lágrima ao canto dos olhos e nem uma palavra sobre o acontecimento inesperado por todos,menos por mim!Um belo almoço de recepção,destinado pela Mãe Júlia elaborado pelo magnífico Reis, servido pelo impecável Quinta,a par das novidades bilaterais dissecadas até á exaustão e que terminou com o belo aroma da mistura do café de São Tomé.
Antes que eu tivesse oportunidade de manifestar a intenção de ir até á cidade,arejar a alma e tonificar os músculos,veio a sugestão que era uma ordem,de ir buscar os livros,já que o Pai António,tambem sentia necessidade absoluta de fazer uma reciclagem anatómica!Morria ali,a ténue esperança de me poder desenfiar um pouco!A partir daí,o dia começava ás sete da manhã e terminava ás sete da tarde,com uma hora de intervalo para o almoço e o prémio de poder conduzir o lindo MG,de braço fora da janela, até á cidade,ao fim do dia, para apanhar os meus irmãos que se divertiam calmamente!No dia seguinte de manhã subíamos ao Hospital.Enquanto o Pai fazia a consulta,operava ou passava visita ás enfermarias,sempre acompanhado pelo velho rubicundo e filosófico enfermeiro Roque,eu subia á varanda e aí ficava a trabalhar toda a manhã.
É dessa varanda que ainda hoje tenho saudades!Vista magnífica para o mar equatorial,horizontes largos,poesia á solta de uma juventude romântica!As palmeiras de leque e os coqueiros acenavam e gemiam,embalados pela brisa marítima,as rosas de porcelana mostravam-se vaidosas,os cães vadios dormiam no terreiro. No ar, o fumo da sanzala misturado com o cheiro da terra vermelha e humedecida.Ao longe,as canôas estavam reduzidas a pequenos pontos no horizonte,desafiando nuvens carregadas e barbatanas de tubarões esfomeados!Deixava a imaginação navegar pelo oceano e aguardava ansioso o retorno das mensagens enviadas e carregadas de poesia ingénua e de juventude plena.O estudo, apesar de frequentemente perturbado por estados de espírito pouco anatómicos,era rentável,potenciado pela memória refrescada e pelo ambiente daquela varanda que tinha qualquer coisa de mágico e perturbador.
Passaram muitos anos,a vida deu muitas voltas,a morte fez-nos várias visitas perfeitamente dispensáveis,mas ainda hoje, a velha varanda é o refúgio virtual que procuro quando preciso meditar,fugir deste mundo louco ou tomar decisões de maior responsabilidade!Sento-me na cadeira de ferro,apoio os braços na mesa pintada de branco,respiro um pouco do fumo da sanzala e procuro o conselho sábio e amigo,de alguém de bata branca vestida,que passeia no horizonte,a quem aceno afogado num mar de saudade!

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

NEUROSE DE INVERNO

Deixo que a alma suba no fumo branco da lareira acesa,onde ardem restos de uma velha oliveira,carcomida pelo tempo e pelos fungos oportunistas!Mais um dia de inverno,triste,chuvoso,negro,carregado de nuvens pesadas que teimam em viajar no céu escurecido,sem raios de sol.Menos um dia de vida,na já curta contabilidade decrescente de uma velhice anunciada que se aproxima a passos largos,como a noite que vai caindo inexorávelmente.Reparo nas brasas vivas e apostadas em reduzir a humidade que escorre nas paredes amareladas,que encharca os ossos e mantem o insuportável cheiro a môfo,amenizado apenas pelo arôma do caldo verde que fervilha na velha panela de ferro!Lá fora, um cão encharcado,tirita de frio e uiva, cada vez que a lua cheia consegue mostrar um ar da sua graça.Acende-se o velho candieiro a petróleo,acolitado pelas velas gastas,de pavio curto,que derretem a estearina e desenham pequenas lágrimas de cêra.Ouve-se o silêncio de um vale adormecido,agora carregado de nevoeiro,onde as relas e os grilos já não cantam e o rio invade as margens,arrastando tudo e todos numa fúria de força reforçada!Adensa-se a escuridão da noite,onde apenas a coruja tem direito a piar,marcando o terreno e mantendo em respeito o leirão atrevido que tenta chegar ao enchido fumado à lareira,onde as cinzas vão ficando amorfas e sem vida e o gato se enrola a ronronar.Termina a função do fôgo, indutor do sono reparador, animado por um sonho,onde na lareira da vida,as chamas permanecem altivas,as brasas aquecem a alma e as cinzas não têm lugar!