terça-feira, 23 de novembro de 2010

CIMEIRAS

As cimeiras estão cada vez mais na ordem do dia!A da NATO que acabou de se realizar no nosso País,foi um estrondoso sucesso, já que permitiu sem qualquer problema,assumir o fracasso do Iraque,o erro do Afeganistão e o perigo mais do que real do Irão,para além de se conseguir que a Rússia,inimigo tradicional,seja para sempre o mais fiél dos aliados!Anunciada há vários meses,veio agora a concretizar-se,com a presença de dezenas de Chefes de Estado,Ministros da Defesa e Negócios Estrangeiros,um sem número de Secretários de Estado,largas centenas de jornalistas e milhares de especialistas em diversas áreas políticas e no domínio da nobre arte e da rentável indústria da guerra!
Brilhou á distância de dois continentes,o Senhor do Mundo,com o seu ar desengonçado,o sorriso aberto e simpático e uma simplicidade que parece natural.No patamar imediatamente abaixo,os representantes supremos das potências nucleares europeias,com um estatuto negado a outros paìses mais perigosos, porque não alinhados,naturalmente sem direito às cimeiras dos G7 ou dos G20 e muito menos ás consagradas e indispensáveis fotografias em Família.Fotografias que não faltaram no fim das magníficas reuniões de resultados préviamente cozinhados,onde o Chefe voltou a ter lugar de destaque,favorável á divulgação universal dos seus enormes dentes brancos!O nervoso anfitrião,relegado para plano secundário,com dificuldade em colocar as mãos trémulas de emoção,sorria para a direita,para a esquerda e para as objectivas,assumindo a postura que lhe dará direito a lugar de destaque na prateleira dourada da Europa,bem remunerado e principalmente bem merecido,pelo esforço desenvolvido nas cimeiras dos seus mandatos.Apesar da crise,de estarmos em época de contenção,do aumento de impostos,da redução dos salários e garantias sociais,a despesa seguramente muito elevada,justifica-se em absoluto pelo prestígio que trouxe para Portugal,a dividir equitativamente por todos os portugueses,matando a fome a uns,reduzindo as carências de outros e, glória das glórias,projectando meia dúzia deles para a alta roda mundial!Adivinha-se que isso vai acontecer a curto prazo e como tal não faz qualquer sentido regatear e muito menos contestar o elevado tributo, para que devemos contribuir orgulhosamente.
Sem dúvida,estamos todos no mesmo barco,a meter água por todos os lados,donde já vão fugindo os ratos dos porões,movido a remos puxados pela plebe e burguesia falida,mas onde o capitão tem cada vez mais mordomias,agitando bandeiras e procurando de binóculos na mão,o porto de abrigo já garantido.As rações de água e alimentos podem estar a chegar ao fim,mas a história contemplou o Vasco da Gama e não os navegadores que morreram de fome,peste ou escorbuto!O nosso destino é cada vez mais remar contra a maré,pagando qualquer preço aos rebocadores,para que ao menos temporáriamente, nos defendam da poderosa corrente do capital,dos ventos da miséria e da tempestade que se adivinha no mar alto!Não podemos nem devemos perder a esperança, regatear esforço e sacrifício,gozar férias,educar os filhos,pedir aumento de vencimento ou sonhar com a redução de impostos!Os milhões que vamos poupar,serão a reserva moral que permitirá mais cimeiras,mais aviões particulares,mais empregos para os correligionários e até maior investimento eleitoral.Finalmente, talvez eles consigam convencer os especuladores a activar os motores dos salva-vidas!Um chama-se FMI o outro BCE!São eles que aguardam impacientes a hora de nos lançar as amarras!Mesmo que o velho casco não aguente,entre mortos e feridos alguém irá escapar,para continuar a cantar eternamente,o nosso triste fado!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

FIGURAS TÌPICAS DE AVEIRO

Em Aveiro,como seguramente em qualquer outro lugar,havia uma série de personagens conhecidas de toda a gente.Uns ,pela sua excentricidade consequente a grande dose de atraso mental,ou pelo menos a um razoável desvio do padrão considerado normal,outros pelo humor ou postura que conseguiram manter ao longo dos anos.
No primeiro grupo,tinham lugar destacado o Luisinho de Viseu,o Japão e o Pum!Personagens com características diferentes,tinham em comum sinais evidentes de forte pancada cerebral à nascença,a que se juntava no caso do Luisinho,marcada atrofia física.Era uma criatura com pouco mais de um metro e vinte de altura,presença garantida e indispensável em tudo o que fosse manifestação social pública,nomeadamente nas de culto religioso tradicional,como as bonitas procissões,que anualmente se renovavam e percorriam as ruas da cidade.O Luisinho vestia-se a rigor,de casaca,cartola e bengala de cabo de prata na mão,que brandia, na cabeça do cortejo, marcando o ritmo do desfile.Ai de quem tivesse a infeliz ideia de se atravessar no percurso,ou de impedir o bom e ritmado andamento da procissão,também ela abrilhantada pelas bandas de música da região!A bengala deixava de ter a função meramente decorativa,para deixar marcas nas costas dos mais atrevidos ou distraídos!Foi também ele, que numa época em que os automóveis ainda eram novidade,foi apanhado pelo meu Avô,a tocar desalmadamente a buzina do Fiat descapotado, de estimação.Quando chamado á atenção,respondeu filosóficamente:«Não se preocupe sr. Tenente-Coronel,pois quando eu tiver o meu,também lhe dou autorização para tocar a buzina sem qualquer problema!».Atitude apesar de tudo subtil,em contraste absoluto com o estilo do Japão ou do Pum.O Japão era um pobre diabo albergado em casa de família abastada,que percorria diáriamente as ruas da cidade,exibindo o seu sorriso cretinóide,não deixando qualquer dúvida sobre a sua sanidade mental.Era o alvo preferido da rapaziada estudantil,que o provocava amigávelmente e a quem ele respondia com violentas pancadas dos pés descalços no pavimento dos passeios,emitindo um estalido que fazia as delícias da malta!Cena repetida vezes sem conta,resposta simples de um circuito cerebral primário,que o viria a eternizar na memória dos cagaréus.
O Pum também não devia nada ao equilibrio mental,embora tivesse outro género de personalidade`.Và-se lá saber porquê,não suportava que alguém imitasse o deflagrar de uma bomba ou foguete!Ao seu ar sério e de poucos amigos, juntava-se uma louca correria atrás de quem dissesse «pum»!A perseguição pelas ruas da cidade,só terminava quando o perseguido conseguia abrigo em qualquer vão de escada,afastando-se do raio de visão do Pum!Olhava para todos os lados,de olhos esbugalhados e dentes arreganhados!Só quando se convencia que tinha perdido a presa,se retirava embrulhado nas mantas imundas que o cobriam de dia e lhe serviam de colchão á noite,resmungando até á exaustão a sua lista de palavrões.
Mais duas personagens que fazem parte da história da cidade,não por insanidade mental,mas pelo papel que tinham no dia a dia da nossa adolescência.A Dona Maria,velhinha embrulhada no seu xaile da beira-mar,sentada na esquina do adro da Sé,com banca de tremoços,pevides,fava rica,cavacas e caramujos carregados de creme amarelo!Estratégicamente colocada no trajecto obrigatório do regresso das aulas matinais,era atracção fatal e estímulo garantido de estômagos esfomeados em hora de refeição.Ainda não esqueci o sabor único daquelas iguarias, que hoje seriam seguramente apreendidas por uma qualquer brigada da Asai!
Finalmente,o Quiosque dos jornais nos Arcos,propriedade do Manel e do Feliciano,ponto de encontro obrigatório,tertúlia certificada do Beira-Mar,fonte inesgotável de novidades desportivas e sociais,convergência natural de escândalos e rumores,onde também se vendiam o Tim-Tim,o Zorro e até o Artes e Letras,para os mais intelectualizados!Localizado no centro da cidade,era ponto de passagem obrigatório e diário,no fim das aulas,das sessões de estudo ou das explicações.Grupo coêso,onde os conhecimentos desportivos,as manifestações pseudo-culturais,a má-lingua social e a irreverência estudantil coabitavam sem qualquer problema.No entanto,para se ter acesso directo e em pleno ao grupo,era necessário ser submetido a uma praxe tão tradicional quanto antiga.O candidato era convenientemente preparado e avisado para manter a todo o custo o segredo que lhe ia ser confiado, em cerimónia condigna,logo que fosse considerado capaz de entender a sua essência!Chegado o dia da confirmação programada e devidamente publicitada,reunia-se a clacke no quiosque, pronta a saudar efusivamente a entrada do novo elemento!Então,por artes mágicas, aparecia o Manel ou o Feliciano,com um volumoso objecto embrulhado em jornais,que era entregue com todo o cuidado ao candidato, para ser desembrulhado.Quando depois de remover as folhas de jornal,percebia a presença de um magnífico e majestoso exemplar de louça das Caldas,devidamente assinado e certificado,o seu ar de espanto, era saudado com uma salva de palmas e a risota geral,que garantiam a sua admissão imediata!Praxe inofensiva,atrevida para a época,que só os homens podiam presenciar e que ainda faz parte integrante da memória desgastada da nossa geração envelhecida!Ainda hoje, não me importava de levar uma bengalada do Luisinho de Viseu,ouvir as patadas do Japão ou correr desalmadamente na frente do Pum,depois de comprar cinco tostões de pevides na Dona Maria da Sé!
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terça-feira, 16 de novembro de 2010

BRINQUEDOS DE LATA E OUTROS

Repentinamente,o mercado ficou inundado de um sem número de réplicas de brinquedos de lata,que marcaram uma época, ao fazerem as delícias da garotada dos anos cinquenta!Bastou olhar para eles,rever a graciosidade das suas linhas e as habilidades de que são capazes quando lhes damos corda,para despertar em mim um sentimento nostálgico de uma infância feliz e a utopia do regresso ao passado.
Os automóveis de luxo e de corrida,os barcos de fundo chato e chaminé fumegante,os combóios de carris circulares,as motos com «side-car»,os aviões de hélices nas asas,os carróceis afrancesados e até as malas de ferramentas ou utensílios de cozinha,fizeram parte de uma vivência simples e despreocupada.Naquele tempo,a madeira e a lata eram os materiais de eleição.Lembro-me das trotinetes artesanais,dos carros de encostar ao ombro,das camionetas de cabine pintada de encarnado,dos carrinhos com rolamentos e até das fisgas e dos piões!Não posso esquecer um buick de lata,altamente sofisticado,descapotável,azul claro com capot branco,de mudanças num volante que virava as rodas e de velocidade controlável!Esta autêntica maravilha,tinha sido prenda de anos da Madrinha lisboeta e passou o resto da vida no fundo do baú de pregos na sala de cimento,donde só saía no dia de anos,despertando sentimentos de paixão e inveja e algumas vezes,guerra fratícida,pela conquista,posse e uso fugaz do belo exemplar!
Vieram depois os «Mecanos»,percursores dos «Legos»,com mil parafusos para apertar em placas perfuradas,permitindo variar as construções e utilizar material diversificado como cordas,roldanas e nalguns casos motores, que raramente funcionavam,mas davam outro estatuto ao resultado final!O Pai Natal ia repondo stocks,a loja do Souto Ratola em Aveiro exibia as novidades cada vez mais caras e sofisticadas,enquanto na Feira de Março era possível comprar berlindes,espingardas de rolha,pistolas de água,revólveres de fulminantes e os célebres espelhos redondos com paciências incorporadas na parte de trás,como os ratinhos de meter nas ratoeiras ou as bolas minúsculas para introduzir nas balizas.
O aparecimento e incremento dos plásticos, relegou para segundo plano,os brinquedos de lata e madeira,definindo-lhes um destino injusto e que pouco mais tarde se viria a confirmar.A informática deu-lhes o golpe de misericórdia,invadindo mercados, definindo tendências, impondo modas e criando uma mentalidade universalmente assumida,numa reforma total do estilo de ocupação dos tempos livres e das actividades prioritárias.As brincadeiras inocentes que na maior parte dos casos também contemplavam a vertente física,deram lugar á estática das play-station e Nintendos,que talvez estimulem mais o racíocinio e a agilidade mental,mas viciam e amarram a juventude aos monitores,permitindo-lhes o acesso a uma pleíade de jogos permanentemente renovados,mas nem sempre aconselháveis,pelo excesso de agressividade e até de terror que alguns fazem questão de exibir!
É evidente que não posso querer que tudo volte á primeira forma,nem tal faria qualquer sentido na actual conjunctura social e laboral,mas a verdade é que é urgente tentar encontrar um ponto de equilíbrio,estimulando-se naturalmente o domínio da informática,sem no entanto esquecer ou minimizar outras vertentes essenciais.O conhecimento das coisas mais simples e menos elaboradas,por serem inteiramente reais e naturais,deveriam compensar o que de virtual tem quase sempre a componente informática,contribuindo também ele,para definir princípios de comportamento social e até de orientação profissional.Assim seja!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

NOTÌCIAS RENTÀVEIS

Os hábitos,as virtudes e o pecado, acompanham os movimentos universais de rotação e translacção,adaptando-se ás regras sociais mutantes,também elas adaptáveis e adaptadas ás novas gerações,numa correria louca e desenfreada ao lucro fácil,ao gozo pleno e á vivência repleta de futilidade.Esquecem-se deliberadamente os mais velhos e principalmente a sua maneira de estar,o seu carácter,os valores que lhes foram orientando os objectivos,colocando-os numa situação desprotegida e não poucas vezes de desprezo total!Fomenta-se em permanência,o facilitismo,o oportunismo e a concorrência desleal,a bem do lucro fácil,do mediatismo rentável e até do sucesso pessoal transitório.
Tenta-se por todos os meios,atingir o estatuto de colunável em revistas da especialidade,numa perspectiva de rentabilização da imagem social,mesmo que efémera,a maior parte das vezes totalmente despropositada,nem que para tal se tenha de pôr em causa a dignidade dos vivos ou a memória dos mortos!Vem isto a propósito da lamentável proliferação de notícias e reportagens sensacionalistas,onde reinam as doenças,os namôros,os casamentos,os divórcios,os golpes de baú,as preferências sexuais,os crimes passionais e outros que tais.Mais grave ainda,não deixa de ser frequente a reportagem mórbida,préviamente anunciada aos sete ventos,de seres humanos totalmente indefesos,em situações terminais e prontos a engrossar a lista das «vítimas de doença prolongada».É um tema, que activa a curiosidade doentia de pessoas fácilmente influenciáveis em termos emocionais,fonte de rendimento seguro, garantia de venda e consequente viabilização das revistas da especialidade, que não hesitam em investir autênticas fortunas na exclusividade de reportagens de casamentos,baptizados,aniversários,doenças e até cerimónias fúnebres!Triste realidade de um mediatismo crescente e comprovadamente influente,numa sociedade descaracterizada,cada vez menos culta e mais ignorante, apoiada numa comunicação social decadente,que desistiu da nobre função de informar e educar,assumindo claramente o objectivo primário do lucro fácil,mesmo que para tal se despreze a privacidade a que todos temos direito.Atitude de ética profissional no mínimo duvidosa, que contribui de forma inequívoca e inexorável,para uma inversão de valores humanos e morais,a todos os títulos lamentável!

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

FICÇÂO

Deitada numa cama de ferro esmaltada de branco,lençóis lavados mas carimbados de azul,não tinha mais de dezoito anos, a miúda de olhar pardacento, que lhe apagava o brilho de uns olhos tão rasgados, como o sorriso ao canto dos lábios!Sabia que tinha um tumor maligno no cérebro!As mãos húmidas, destilavam o terror de uma morte anunciada e passeavam nervosamente pela dobra do lençol.Fazia questão de manter limpos e impecávelmente penteados,os cabelos sedosos e castanhos, de madeixas caídas sobre os olhos verdes.Tinha a noção exacta de que a brisa do mar de que tanto gostava,nunca mais os faria esvoaçar em direcção á espuma branca saída das ondas,deixando que os raios de sol se reflectissem e originando pequenos arco-íris de desejos garantidos.Percebia-se a sina dos mal-amados,que nunca viria a assumir,fazendo questão de ser a primeira a saudar o dia,repudiando em absoluto,permitir que fosse o último de uma vida curta,mal vivida,sem loucas paixões,nem pecados mortais!A magia da juventude,diluía-se na esperança perdida num mar de ilusões e no prenúncio seguro da partida precoce.E mesmo assim ,continuava a sorrir,a sorrir sempre,na tentativa desesperada de seduzir a alternativa de um sonho mau,que terminasse ao acordar para uma vida nova tão justa como desejada!Os dias passavam num ritmo infernal,potenciado pela certeza do fim que se aproximava sem dó nem piedade,fazendo-se anunciar na perda progressiva de energia,na visão cada vez mais desfocada,na sonolência incontrolável,no sono profundo e comatoso,perda definitiva de uma esperança que já nascera perdida!Pouco depois,numa noite de violenta tempestade,um relâmpago iluminou-lhe o último esgar sorridente e o enorme trovão lembrou o grito de revolta que ela nunca tinha querido soltar.No dia seguinte, ao amanhecer,apertei-lhe a mão fria, mas não húmida,num adeus sentido,com mais fúria do que dôr,garantia de um encontro noutro mundo mais justo,mais humano,de esperança renovada,onde a Inês que agora partira,pudesse correr á beira do mar,de cabelos castanhos ao vento,de brilho feliz nos olhos esverdeados e sorrindo,sorrindo sem parar!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

CALOIRO

Há cerca de quarenta e oito anos, cheguei a Coimbra na reles condição de caloiro e como tal, com um estatuto social muito abaixo de cão! Entrei na Pensão Doméstica, no número 14 da Rua Alexandre Herculano, da velha D. Amélia, carregada de flatos e já muito carcomida pelo caruncho, delegando funções e a gestão na sobrinha, também ela Amélia, sirigaita de dentinho maroto, sem nada dever à beleza e que entre outros responsos, me foi desde logo avisando que apenas tinha direito a dois banhos por semana e que os eventuais abusos de higiene pessoal, seriam pagos a vinte e cinco tostões a unidade! Alertou-me com ar de poucos amigos que aquela era uma casa séria, onde viviam para além do professor Orlando de Carvalho, o Dr Jorge Moreira da Silva, o sr. Loureiro da casa Campeão, duas professoras de liceu que dormiam pelo menos no mesmo quarto e mais um caloiro de seu nome Jorge Coelho, que estava a chegar de Viseu, para também ele tentar ser médico. Às refeições, ainda teriamos a companhia de um professor primário e do Jorge Strecht, na altura aluno do segundo ano de Direito. Ainda a palestra de boas-vindas não tinha acabado e já um estudante de Direito, de capa e batina e pasta dobrada na mão, se apresentava como sendo o Artur Beleza de Vasconcelos, ordenando-me que o acompanhasse, sem sequer me dar hipótese de arrumar a mala! Sem saber o que me esperava, acompanhei o doutor Beleza à distância conveniente e inerente à minha desgraçada condição de caloiro fedorento, até à República Baco,onde me esperava calorosa recepção e se adivinhava o mesmo destino da meia dúzia de parceiros de estatuto e de desgraça, apanhados na rede da praxe, que já prestavam provas e mostravam as habilidades de que eram capazes ,enchendo de gozo a barriga dos mais velhos!Quando confirmei que era de Aveiro,ordenaram-me que fizesse de Farol da Barra,para de seguida dançar o fado de Coimbra em ritmo de valsa e ser violentamente criticado por o ter feito,desrespeitando em absoluto a tradição e o estatuto a ele inerente!Fui condenado a contar grupos de dez pêlos nas pernas dos outros caloiros,utilizando o décimo primeiro para os amarrar!A sessão terminou,com um penico na cabeça e uma vassoura ao ombro,gritando«ás armas»sempre que alguma miúda mais gira o justificasse.O bom desempenho,permitiu que a sessão terminasse relativamente cêdo, por entre abraços e promessas solenes de protecção, a que tinha direito por ser considerado caloiro daquela República.Atitude saudável,que me desinibiu,proporcionou o primeiro contacto com o ambiente coimbrão e integrar orgulhoso, o estatuto de estudante da Universidade de Coimbra.
O Artur Beleza,não sabia bem a dimensão das escadas do Quebra-Costas e pediu-me para as confirmar com o palito métrico tradicional,rematando assim da melhor maneira a sessão que ele mesmo tinha iniciado!Começou nesse dia uma amizade sincera,que nunca esqueci,apesar de há muitos anos não ter qualquer contacto com o meu amigo.
Á noite ,foi a primeira «refeição em família»,não tendo sido difícil perceber que me esperava um ambiente,onde a cultura geral e a política de contestação á ditadura se complementavam, para serem factor decisivo na minha formação,como homem e cidadão.O convívio foi-se tornando cada vez mais familiar,com uma componente alegremente didáctica,naturalmente politizada,mas com discussão de ideias totalmente aberta,sem restrições de qualquer espécie,que se prolongava para o Mandarim,ponto de encontro obrigatório.Era aí que quando as finanças o permitiam,se colmatava o furo gástrico, que a posta de peixe espada grelhado e a folha de alface amarelada,da Pensão Doméstica,não eram suficientes para tamponar!Era lá que se delineavam estratégias,actualizavam as notícias políticas segredadas ao ouvido ,evitando e tornando inuteis os esforços dos pides atentos a tudo e a todos.Foi lá que se viveu intensa e apaixonadamente a greve académica,o rescaldo dos plenários e acções de rua,as sequelas dos encontros com a polícia de choque e até a tristeza do fim do movimento, coincidente com a prisão e expulsão de alguns amigos,após a tomada da sede da Associação Académica.
Pelo meio a tradicional Latada,onde como caloiro imundo fui vestido de mulher mamuda,mais uma vez de penico na mão,servindo de cinzeiro do Pedro Lemos,finalista de Medicina,quase conterrâneo e amigo de longa data.Ainda o desfile não tinha chegado aos arcos do Jardim Botânico e já eu, que normalmente não bebia, tinha meia garrafa de brandy no estômago! O resultado era previsível! Cumpri na íntegra a missão complementar de conseguir o número de telefone das garotas giras que fosse encontrando pelo caminho e pudessem ser candidatas a noivas do Doutor. Só quando depois de um sem número de piropos e elogios, dirigidos a mais uma potencial candidata, a ouvi a tratar-me pelo nome próprio, percebi vagamente que tinha posto a pata na poça, como mais tarde, numa visita de cortesia que a respeitável senhora fez à minha Mãe, viria a confirmar! Foi o pretexto para instintivamente abandonar o cortejo, já no fim da Rua Ferreira Borges e tentar o regresso aos meus aposentos. Lembro-me vagamente que ainda me meti com algumas enfermeiras da "Aldeia das Macacas" e depois foi o apagão completo. Acordei todo partido, dentro do guarda-fatos, voltei à realidade e descansei os amigos que me tinham procurado por todo o lado e que mais tarde haveriam de me oferecer uma miniatura do guarda-fatos como comemoração do feito. Era assim a Coimbra do meu tempo! Cultura, Política e Boémia em amálgama compatível e saudável, fermento de amizades vitalícias, condimento imprescindível na formação de gerações. Confesso a minha tremenda saudade!