quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

NATAL

Desde sempre,vivo a época natalìcia de um modo especial,que foi mudando ao longo dos anos,mas que manteve sempre a mística da fusão de sentimentos,onde a nostalgia,a disponibilidade,a sensibilidade exacerbada e o mistério da fé,têm um lugar de eleição.
Na minha infância,o Natal era a festa de renovação do stock de brinquedos,colocados estratégicamente de madrugada,á volta da árvore de Natal.Os sapatos,botas e chinelos,marcavam territórios e a correria era desenfreada,logo que a campaínha sábiamente tocada pela Avó Maria, soava no corredor de acesso á casa velha,anunciando a chegada do Pai Natal!O desembrulhar das prendas,era o momento mágico de confirmação, ou não,dos desejos manifestados ao portador,depois de garantido o bom comportamento social e escolar!Testava-se o funcionamento,deitava-se o olho ás prendas dos parceiros e guardavam-se cuidadosamente as nossas,para gozo posterior, a salvo de invejas indesejáveis ou utilização imprevista.Os anos foram passando e mais tarde quiz o destino e a necessidade familiar,que Pais e Irmãos estivessem a muitas milhas de distância,numa ilha equatorial,baptizada de São Tomé.Á medida que o 25 de Dezembro se aproximava,choviam os telegramas de Boas-Festas e as cartas ainda escritas com canetas de tinta permanente,não poucas vezes manchadas por saudosas e incontidas lágrimas!Apesar do esforço que toda a família fazia para me integrar no ambiente natalício,a verdade é que nada podia substituir o olhar carinhoso do Pai,a alegria contagiante da Mãe,a atitude e vivência comunitária dos irmãos.A enorme mesa ficava curta,o bacalhau não tinha sabor,os sonhos,as rabanadas e as filhoses já pouco ou nada me diziam!Pedia encarecidamente a todos os Santos e também ao Pai Natal,que tudo acabasse depressa,para que o dia seguinte,depois de um sono inundado pelas lágrimas vertidas na almofada de linho,fosse o retomar de uma normalidade aparente e de uma saudade contida.
Depois,vieram os filhos,chegaram os netos e regressou a família directa,tornando possível durante alguns anos,voltar a saborear um bom bacalhau e o perú recheado, assado no forno a lenha,que ajudaram a atenuar a estúpida sensação de deslocado, de que não me conseguia libertar!Com a partida dos Pais, fui automáticamente promovido a decano dos Serenos,com lugar cativo na cabeceira da enorme mesa de pinho e bancos corridos,garantia de guia de marcha para outras paragens menos conhecidas...Até lá quero orientar o Pai Natal na descida do sobreiral, quando ecoarem as badaladas da Missa do Galo,respirar o ar puro cheio do terno sorriso do Pai António e da alegria de viver da Mãe Júlia!Já agora, quando o meu lugar na cabeceira da mesa ficar vago,permitam-me que vos envie um forte abraço de Boas-Festas e vos faça chegar na brisa da noite de Natal,uma saudosa mensagem de amizade eterna!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

ASSÉDIOS

Os assédios estão na ordem do dia!Apesar de tudo, o muito badalado assédio sexual,parece ter entrado numa fase de acalmia,ou até de meditação,para que eventualmente possa ser melhor definido e para que não restem dúvidas sobre quem é que assedia ou quem é assediado!Na verdade confesso a minha ignorância sobre este tipo de assédio e o que é de penalizar ou deixar de penalizar.Bem sei, que o mais escondido e mais proíbido, é o mais apetecido,mas na realidade qual será a verdadeira intenção da respeitável senhora,que querendo acompanhar a moda, todos os anos criteriosamente imposta pelos grandes costureiros,usa uma mini-saia convergente para o enorme decote,expondo e magnificando os atributos que Deus lhe deu?E qual a intenção primária da imaculada dama,para exibir bamboleante o referido vestuário,na calçada,no local de trabalho ou na pastelaria fina,onde bebe um chá de tília e come meia torrada, para manter o peso estipulado pela dietista,inimiga feroz do belo cozido á portuguesa,do leitão da bairrada ou das tripas á moda do Porto?Porque coloca a voz no grau máximo de sensualidade, complementando o gesto estudado e o olhar discreto, mas revelador?Porquê o sorriso enigmático e distante a temperar o fácies romântico?Será que com tudo isto se pretende testar a capacidade do homem resistir a todo o tipo de provocações,reduzir níveis hormonais,controlando reacções totalmente fisiológicas ,obrigando-o a uma atitude passiva,perante uma exibição que necessáriamente lhe é dedicada e dirigida?Sinceramente tenho alguma dificuldade em digerir esta regra,até porque em boa verdade, uma bofetada dada a tempo e horas, é seguramente remédio santo para qualquer desvario!Era assim que as Senhoras de antigamente resolviam as situações,que eventualmente tivessem níveis de decoro e decência abaixo do razoável!É por isso que me vou obrigando muitas vezes a fechar os olhos,ou pelo menos a deixá-los maliciosamente entreabertos,evitando possíveis dissabores e rótulos que não aceito nem mereço!
Há outro tipo de assédio,esse sim muito mais grave,que nos acontece com uma frequência cada vez maior e que me irrita solenemente!Refiro-me ás meninas de voz doce e indefinida,que á hora de jantar,fazem tocar telefones e telemóveis,protegidos por números secretos,oferecendo cartões ou facilidades de crédito em tempo de crise,produtos atractivos mas dispensáveis,mesmo quando pagos em prestações, que se irão arrastando ao longo dos anos!Estou farto de ouvir«O senhor Carlos já conhece?»Ou então «Mas porque é que não está interessado?»Nunca fiz questão do DR,apesar de me ter dado muito trabalho a conseguir,mas confesso que o «Senhor Carlos»é irritantemente impessoal e merecia pelo menos um apelido!Muito menos aceito ter que dar satisfações,do meu desinteresse pelos créditos e produtos que teimosamente me são oferecidos,além do mais, a horas e com modos totalmente inconvenientes.Se estas cenas se repetirem,estou tentado a seguir o conselho de um amigo meu: quando perceber o assédio comercial,peço para aguardarem um momento e deixo o telefone em espera prolongada e irreversível!Talvez adivinhe alguns palavrões digitalizados,mas descanso o espírito,faço calmamente a digestão e principalmente assumo o direito á privacidade!

terça-feira, 23 de novembro de 2010

CIMEIRAS

As cimeiras estão cada vez mais na ordem do dia!A da NATO que acabou de se realizar no nosso País,foi um estrondoso sucesso, já que permitiu sem qualquer problema,assumir o fracasso do Iraque,o erro do Afeganistão e o perigo mais do que real do Irão,para além de se conseguir que a Rússia,inimigo tradicional,seja para sempre o mais fiél dos aliados!Anunciada há vários meses,veio agora a concretizar-se,com a presença de dezenas de Chefes de Estado,Ministros da Defesa e Negócios Estrangeiros,um sem número de Secretários de Estado,largas centenas de jornalistas e milhares de especialistas em diversas áreas políticas e no domínio da nobre arte e da rentável indústria da guerra!
Brilhou á distância de dois continentes,o Senhor do Mundo,com o seu ar desengonçado,o sorriso aberto e simpático e uma simplicidade que parece natural.No patamar imediatamente abaixo,os representantes supremos das potências nucleares europeias,com um estatuto negado a outros paìses mais perigosos, porque não alinhados,naturalmente sem direito às cimeiras dos G7 ou dos G20 e muito menos ás consagradas e indispensáveis fotografias em Família.Fotografias que não faltaram no fim das magníficas reuniões de resultados préviamente cozinhados,onde o Chefe voltou a ter lugar de destaque,favorável á divulgação universal dos seus enormes dentes brancos!O nervoso anfitrião,relegado para plano secundário,com dificuldade em colocar as mãos trémulas de emoção,sorria para a direita,para a esquerda e para as objectivas,assumindo a postura que lhe dará direito a lugar de destaque na prateleira dourada da Europa,bem remunerado e principalmente bem merecido,pelo esforço desenvolvido nas cimeiras dos seus mandatos.Apesar da crise,de estarmos em época de contenção,do aumento de impostos,da redução dos salários e garantias sociais,a despesa seguramente muito elevada,justifica-se em absoluto pelo prestígio que trouxe para Portugal,a dividir equitativamente por todos os portugueses,matando a fome a uns,reduzindo as carências de outros e, glória das glórias,projectando meia dúzia deles para a alta roda mundial!Adivinha-se que isso vai acontecer a curto prazo e como tal não faz qualquer sentido regatear e muito menos contestar o elevado tributo, para que devemos contribuir orgulhosamente.
Sem dúvida,estamos todos no mesmo barco,a meter água por todos os lados,donde já vão fugindo os ratos dos porões,movido a remos puxados pela plebe e burguesia falida,mas onde o capitão tem cada vez mais mordomias,agitando bandeiras e procurando de binóculos na mão,o porto de abrigo já garantido.As rações de água e alimentos podem estar a chegar ao fim,mas a história contemplou o Vasco da Gama e não os navegadores que morreram de fome,peste ou escorbuto!O nosso destino é cada vez mais remar contra a maré,pagando qualquer preço aos rebocadores,para que ao menos temporáriamente, nos defendam da poderosa corrente do capital,dos ventos da miséria e da tempestade que se adivinha no mar alto!Não podemos nem devemos perder a esperança, regatear esforço e sacrifício,gozar férias,educar os filhos,pedir aumento de vencimento ou sonhar com a redução de impostos!Os milhões que vamos poupar,serão a reserva moral que permitirá mais cimeiras,mais aviões particulares,mais empregos para os correligionários e até maior investimento eleitoral.Finalmente, talvez eles consigam convencer os especuladores a activar os motores dos salva-vidas!Um chama-se FMI o outro BCE!São eles que aguardam impacientes a hora de nos lançar as amarras!Mesmo que o velho casco não aguente,entre mortos e feridos alguém irá escapar,para continuar a cantar eternamente,o nosso triste fado!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

FIGURAS TÌPICAS DE AVEIRO

Em Aveiro,como seguramente em qualquer outro lugar,havia uma série de personagens conhecidas de toda a gente.Uns ,pela sua excentricidade consequente a grande dose de atraso mental,ou pelo menos a um razoável desvio do padrão considerado normal,outros pelo humor ou postura que conseguiram manter ao longo dos anos.
No primeiro grupo,tinham lugar destacado o Luisinho de Viseu,o Japão e o Pum!Personagens com características diferentes,tinham em comum sinais evidentes de forte pancada cerebral à nascença,a que se juntava no caso do Luisinho,marcada atrofia física.Era uma criatura com pouco mais de um metro e vinte de altura,presença garantida e indispensável em tudo o que fosse manifestação social pública,nomeadamente nas de culto religioso tradicional,como as bonitas procissões,que anualmente se renovavam e percorriam as ruas da cidade.O Luisinho vestia-se a rigor,de casaca,cartola e bengala de cabo de prata na mão,que brandia, na cabeça do cortejo, marcando o ritmo do desfile.Ai de quem tivesse a infeliz ideia de se atravessar no percurso,ou de impedir o bom e ritmado andamento da procissão,também ela abrilhantada pelas bandas de música da região!A bengala deixava de ter a função meramente decorativa,para deixar marcas nas costas dos mais atrevidos ou distraídos!Foi também ele, que numa época em que os automóveis ainda eram novidade,foi apanhado pelo meu Avô,a tocar desalmadamente a buzina do Fiat descapotado, de estimação.Quando chamado á atenção,respondeu filosóficamente:«Não se preocupe sr. Tenente-Coronel,pois quando eu tiver o meu,também lhe dou autorização para tocar a buzina sem qualquer problema!».Atitude apesar de tudo subtil,em contraste absoluto com o estilo do Japão ou do Pum.O Japão era um pobre diabo albergado em casa de família abastada,que percorria diáriamente as ruas da cidade,exibindo o seu sorriso cretinóide,não deixando qualquer dúvida sobre a sua sanidade mental.Era o alvo preferido da rapaziada estudantil,que o provocava amigávelmente e a quem ele respondia com violentas pancadas dos pés descalços no pavimento dos passeios,emitindo um estalido que fazia as delícias da malta!Cena repetida vezes sem conta,resposta simples de um circuito cerebral primário,que o viria a eternizar na memória dos cagaréus.
O Pum também não devia nada ao equilibrio mental,embora tivesse outro género de personalidade`.Và-se lá saber porquê,não suportava que alguém imitasse o deflagrar de uma bomba ou foguete!Ao seu ar sério e de poucos amigos, juntava-se uma louca correria atrás de quem dissesse «pum»!A perseguição pelas ruas da cidade,só terminava quando o perseguido conseguia abrigo em qualquer vão de escada,afastando-se do raio de visão do Pum!Olhava para todos os lados,de olhos esbugalhados e dentes arreganhados!Só quando se convencia que tinha perdido a presa,se retirava embrulhado nas mantas imundas que o cobriam de dia e lhe serviam de colchão á noite,resmungando até á exaustão a sua lista de palavrões.
Mais duas personagens que fazem parte da história da cidade,não por insanidade mental,mas pelo papel que tinham no dia a dia da nossa adolescência.A Dona Maria,velhinha embrulhada no seu xaile da beira-mar,sentada na esquina do adro da Sé,com banca de tremoços,pevides,fava rica,cavacas e caramujos carregados de creme amarelo!Estratégicamente colocada no trajecto obrigatório do regresso das aulas matinais,era atracção fatal e estímulo garantido de estômagos esfomeados em hora de refeição.Ainda não esqueci o sabor único daquelas iguarias, que hoje seriam seguramente apreendidas por uma qualquer brigada da Asai!
Finalmente,o Quiosque dos jornais nos Arcos,propriedade do Manel e do Feliciano,ponto de encontro obrigatório,tertúlia certificada do Beira-Mar,fonte inesgotável de novidades desportivas e sociais,convergência natural de escândalos e rumores,onde também se vendiam o Tim-Tim,o Zorro e até o Artes e Letras,para os mais intelectualizados!Localizado no centro da cidade,era ponto de passagem obrigatório e diário,no fim das aulas,das sessões de estudo ou das explicações.Grupo coêso,onde os conhecimentos desportivos,as manifestações pseudo-culturais,a má-lingua social e a irreverência estudantil coabitavam sem qualquer problema.No entanto,para se ter acesso directo e em pleno ao grupo,era necessário ser submetido a uma praxe tão tradicional quanto antiga.O candidato era convenientemente preparado e avisado para manter a todo o custo o segredo que lhe ia ser confiado, em cerimónia condigna,logo que fosse considerado capaz de entender a sua essência!Chegado o dia da confirmação programada e devidamente publicitada,reunia-se a clacke no quiosque, pronta a saudar efusivamente a entrada do novo elemento!Então,por artes mágicas, aparecia o Manel ou o Feliciano,com um volumoso objecto embrulhado em jornais,que era entregue com todo o cuidado ao candidato, para ser desembrulhado.Quando depois de remover as folhas de jornal,percebia a presença de um magnífico e majestoso exemplar de louça das Caldas,devidamente assinado e certificado,o seu ar de espanto, era saudado com uma salva de palmas e a risota geral,que garantiam a sua admissão imediata!Praxe inofensiva,atrevida para a época,que só os homens podiam presenciar e que ainda faz parte integrante da memória desgastada da nossa geração envelhecida!Ainda hoje, não me importava de levar uma bengalada do Luisinho de Viseu,ouvir as patadas do Japão ou correr desalmadamente na frente do Pum,depois de comprar cinco tostões de pevides na Dona Maria da Sé!
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terça-feira, 16 de novembro de 2010

BRINQUEDOS DE LATA E OUTROS

Repentinamente,o mercado ficou inundado de um sem número de réplicas de brinquedos de lata,que marcaram uma época, ao fazerem as delícias da garotada dos anos cinquenta!Bastou olhar para eles,rever a graciosidade das suas linhas e as habilidades de que são capazes quando lhes damos corda,para despertar em mim um sentimento nostálgico de uma infância feliz e a utopia do regresso ao passado.
Os automóveis de luxo e de corrida,os barcos de fundo chato e chaminé fumegante,os combóios de carris circulares,as motos com «side-car»,os aviões de hélices nas asas,os carróceis afrancesados e até as malas de ferramentas ou utensílios de cozinha,fizeram parte de uma vivência simples e despreocupada.Naquele tempo,a madeira e a lata eram os materiais de eleição.Lembro-me das trotinetes artesanais,dos carros de encostar ao ombro,das camionetas de cabine pintada de encarnado,dos carrinhos com rolamentos e até das fisgas e dos piões!Não posso esquecer um buick de lata,altamente sofisticado,descapotável,azul claro com capot branco,de mudanças num volante que virava as rodas e de velocidade controlável!Esta autêntica maravilha,tinha sido prenda de anos da Madrinha lisboeta e passou o resto da vida no fundo do baú de pregos na sala de cimento,donde só saía no dia de anos,despertando sentimentos de paixão e inveja e algumas vezes,guerra fratícida,pela conquista,posse e uso fugaz do belo exemplar!
Vieram depois os «Mecanos»,percursores dos «Legos»,com mil parafusos para apertar em placas perfuradas,permitindo variar as construções e utilizar material diversificado como cordas,roldanas e nalguns casos motores, que raramente funcionavam,mas davam outro estatuto ao resultado final!O Pai Natal ia repondo stocks,a loja do Souto Ratola em Aveiro exibia as novidades cada vez mais caras e sofisticadas,enquanto na Feira de Março era possível comprar berlindes,espingardas de rolha,pistolas de água,revólveres de fulminantes e os célebres espelhos redondos com paciências incorporadas na parte de trás,como os ratinhos de meter nas ratoeiras ou as bolas minúsculas para introduzir nas balizas.
O aparecimento e incremento dos plásticos, relegou para segundo plano,os brinquedos de lata e madeira,definindo-lhes um destino injusto e que pouco mais tarde se viria a confirmar.A informática deu-lhes o golpe de misericórdia,invadindo mercados, definindo tendências, impondo modas e criando uma mentalidade universalmente assumida,numa reforma total do estilo de ocupação dos tempos livres e das actividades prioritárias.As brincadeiras inocentes que na maior parte dos casos também contemplavam a vertente física,deram lugar á estática das play-station e Nintendos,que talvez estimulem mais o racíocinio e a agilidade mental,mas viciam e amarram a juventude aos monitores,permitindo-lhes o acesso a uma pleíade de jogos permanentemente renovados,mas nem sempre aconselháveis,pelo excesso de agressividade e até de terror que alguns fazem questão de exibir!
É evidente que não posso querer que tudo volte á primeira forma,nem tal faria qualquer sentido na actual conjunctura social e laboral,mas a verdade é que é urgente tentar encontrar um ponto de equilíbrio,estimulando-se naturalmente o domínio da informática,sem no entanto esquecer ou minimizar outras vertentes essenciais.O conhecimento das coisas mais simples e menos elaboradas,por serem inteiramente reais e naturais,deveriam compensar o que de virtual tem quase sempre a componente informática,contribuindo também ele,para definir princípios de comportamento social e até de orientação profissional.Assim seja!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

NOTÌCIAS RENTÀVEIS

Os hábitos,as virtudes e o pecado, acompanham os movimentos universais de rotação e translacção,adaptando-se ás regras sociais mutantes,também elas adaptáveis e adaptadas ás novas gerações,numa correria louca e desenfreada ao lucro fácil,ao gozo pleno e á vivência repleta de futilidade.Esquecem-se deliberadamente os mais velhos e principalmente a sua maneira de estar,o seu carácter,os valores que lhes foram orientando os objectivos,colocando-os numa situação desprotegida e não poucas vezes de desprezo total!Fomenta-se em permanência,o facilitismo,o oportunismo e a concorrência desleal,a bem do lucro fácil,do mediatismo rentável e até do sucesso pessoal transitório.
Tenta-se por todos os meios,atingir o estatuto de colunável em revistas da especialidade,numa perspectiva de rentabilização da imagem social,mesmo que efémera,a maior parte das vezes totalmente despropositada,nem que para tal se tenha de pôr em causa a dignidade dos vivos ou a memória dos mortos!Vem isto a propósito da lamentável proliferação de notícias e reportagens sensacionalistas,onde reinam as doenças,os namôros,os casamentos,os divórcios,os golpes de baú,as preferências sexuais,os crimes passionais e outros que tais.Mais grave ainda,não deixa de ser frequente a reportagem mórbida,préviamente anunciada aos sete ventos,de seres humanos totalmente indefesos,em situações terminais e prontos a engrossar a lista das «vítimas de doença prolongada».É um tema, que activa a curiosidade doentia de pessoas fácilmente influenciáveis em termos emocionais,fonte de rendimento seguro, garantia de venda e consequente viabilização das revistas da especialidade, que não hesitam em investir autênticas fortunas na exclusividade de reportagens de casamentos,baptizados,aniversários,doenças e até cerimónias fúnebres!Triste realidade de um mediatismo crescente e comprovadamente influente,numa sociedade descaracterizada,cada vez menos culta e mais ignorante, apoiada numa comunicação social decadente,que desistiu da nobre função de informar e educar,assumindo claramente o objectivo primário do lucro fácil,mesmo que para tal se despreze a privacidade a que todos temos direito.Atitude de ética profissional no mínimo duvidosa, que contribui de forma inequívoca e inexorável,para uma inversão de valores humanos e morais,a todos os títulos lamentável!

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

FICÇÂO

Deitada numa cama de ferro esmaltada de branco,lençóis lavados mas carimbados de azul,não tinha mais de dezoito anos, a miúda de olhar pardacento, que lhe apagava o brilho de uns olhos tão rasgados, como o sorriso ao canto dos lábios!Sabia que tinha um tumor maligno no cérebro!As mãos húmidas, destilavam o terror de uma morte anunciada e passeavam nervosamente pela dobra do lençol.Fazia questão de manter limpos e impecávelmente penteados,os cabelos sedosos e castanhos, de madeixas caídas sobre os olhos verdes.Tinha a noção exacta de que a brisa do mar de que tanto gostava,nunca mais os faria esvoaçar em direcção á espuma branca saída das ondas,deixando que os raios de sol se reflectissem e originando pequenos arco-íris de desejos garantidos.Percebia-se a sina dos mal-amados,que nunca viria a assumir,fazendo questão de ser a primeira a saudar o dia,repudiando em absoluto,permitir que fosse o último de uma vida curta,mal vivida,sem loucas paixões,nem pecados mortais!A magia da juventude,diluía-se na esperança perdida num mar de ilusões e no prenúncio seguro da partida precoce.E mesmo assim ,continuava a sorrir,a sorrir sempre,na tentativa desesperada de seduzir a alternativa de um sonho mau,que terminasse ao acordar para uma vida nova tão justa como desejada!Os dias passavam num ritmo infernal,potenciado pela certeza do fim que se aproximava sem dó nem piedade,fazendo-se anunciar na perda progressiva de energia,na visão cada vez mais desfocada,na sonolência incontrolável,no sono profundo e comatoso,perda definitiva de uma esperança que já nascera perdida!Pouco depois,numa noite de violenta tempestade,um relâmpago iluminou-lhe o último esgar sorridente e o enorme trovão lembrou o grito de revolta que ela nunca tinha querido soltar.No dia seguinte, ao amanhecer,apertei-lhe a mão fria, mas não húmida,num adeus sentido,com mais fúria do que dôr,garantia de um encontro noutro mundo mais justo,mais humano,de esperança renovada,onde a Inês que agora partira,pudesse correr á beira do mar,de cabelos castanhos ao vento,de brilho feliz nos olhos esverdeados e sorrindo,sorrindo sem parar!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

CALOIRO

Há cerca de quarenta e oito anos, cheguei a Coimbra na reles condição de caloiro e como tal, com um estatuto social muito abaixo de cão! Entrei na Pensão Doméstica, no número 14 da Rua Alexandre Herculano, da velha D. Amélia, carregada de flatos e já muito carcomida pelo caruncho, delegando funções e a gestão na sobrinha, também ela Amélia, sirigaita de dentinho maroto, sem nada dever à beleza e que entre outros responsos, me foi desde logo avisando que apenas tinha direito a dois banhos por semana e que os eventuais abusos de higiene pessoal, seriam pagos a vinte e cinco tostões a unidade! Alertou-me com ar de poucos amigos que aquela era uma casa séria, onde viviam para além do professor Orlando de Carvalho, o Dr Jorge Moreira da Silva, o sr. Loureiro da casa Campeão, duas professoras de liceu que dormiam pelo menos no mesmo quarto e mais um caloiro de seu nome Jorge Coelho, que estava a chegar de Viseu, para também ele tentar ser médico. Às refeições, ainda teriamos a companhia de um professor primário e do Jorge Strecht, na altura aluno do segundo ano de Direito. Ainda a palestra de boas-vindas não tinha acabado e já um estudante de Direito, de capa e batina e pasta dobrada na mão, se apresentava como sendo o Artur Beleza de Vasconcelos, ordenando-me que o acompanhasse, sem sequer me dar hipótese de arrumar a mala! Sem saber o que me esperava, acompanhei o doutor Beleza à distância conveniente e inerente à minha desgraçada condição de caloiro fedorento, até à República Baco,onde me esperava calorosa recepção e se adivinhava o mesmo destino da meia dúzia de parceiros de estatuto e de desgraça, apanhados na rede da praxe, que já prestavam provas e mostravam as habilidades de que eram capazes ,enchendo de gozo a barriga dos mais velhos!Quando confirmei que era de Aveiro,ordenaram-me que fizesse de Farol da Barra,para de seguida dançar o fado de Coimbra em ritmo de valsa e ser violentamente criticado por o ter feito,desrespeitando em absoluto a tradição e o estatuto a ele inerente!Fui condenado a contar grupos de dez pêlos nas pernas dos outros caloiros,utilizando o décimo primeiro para os amarrar!A sessão terminou,com um penico na cabeça e uma vassoura ao ombro,gritando«ás armas»sempre que alguma miúda mais gira o justificasse.O bom desempenho,permitiu que a sessão terminasse relativamente cêdo, por entre abraços e promessas solenes de protecção, a que tinha direito por ser considerado caloiro daquela República.Atitude saudável,que me desinibiu,proporcionou o primeiro contacto com o ambiente coimbrão e integrar orgulhoso, o estatuto de estudante da Universidade de Coimbra.
O Artur Beleza,não sabia bem a dimensão das escadas do Quebra-Costas e pediu-me para as confirmar com o palito métrico tradicional,rematando assim da melhor maneira a sessão que ele mesmo tinha iniciado!Começou nesse dia uma amizade sincera,que nunca esqueci,apesar de há muitos anos não ter qualquer contacto com o meu amigo.
Á noite ,foi a primeira «refeição em família»,não tendo sido difícil perceber que me esperava um ambiente,onde a cultura geral e a política de contestação á ditadura se complementavam, para serem factor decisivo na minha formação,como homem e cidadão.O convívio foi-se tornando cada vez mais familiar,com uma componente alegremente didáctica,naturalmente politizada,mas com discussão de ideias totalmente aberta,sem restrições de qualquer espécie,que se prolongava para o Mandarim,ponto de encontro obrigatório.Era aí que quando as finanças o permitiam,se colmatava o furo gástrico, que a posta de peixe espada grelhado e a folha de alface amarelada,da Pensão Doméstica,não eram suficientes para tamponar!Era lá que se delineavam estratégias,actualizavam as notícias políticas segredadas ao ouvido ,evitando e tornando inuteis os esforços dos pides atentos a tudo e a todos.Foi lá que se viveu intensa e apaixonadamente a greve académica,o rescaldo dos plenários e acções de rua,as sequelas dos encontros com a polícia de choque e até a tristeza do fim do movimento, coincidente com a prisão e expulsão de alguns amigos,após a tomada da sede da Associação Académica.
Pelo meio a tradicional Latada,onde como caloiro imundo fui vestido de mulher mamuda,mais uma vez de penico na mão,servindo de cinzeiro do Pedro Lemos,finalista de Medicina,quase conterrâneo e amigo de longa data.Ainda o desfile não tinha chegado aos arcos do Jardim Botânico e já eu, que normalmente não bebia, tinha meia garrafa de brandy no estômago! O resultado era previsível! Cumpri na íntegra a missão complementar de conseguir o número de telefone das garotas giras que fosse encontrando pelo caminho e pudessem ser candidatas a noivas do Doutor. Só quando depois de um sem número de piropos e elogios, dirigidos a mais uma potencial candidata, a ouvi a tratar-me pelo nome próprio, percebi vagamente que tinha posto a pata na poça, como mais tarde, numa visita de cortesia que a respeitável senhora fez à minha Mãe, viria a confirmar! Foi o pretexto para instintivamente abandonar o cortejo, já no fim da Rua Ferreira Borges e tentar o regresso aos meus aposentos. Lembro-me vagamente que ainda me meti com algumas enfermeiras da "Aldeia das Macacas" e depois foi o apagão completo. Acordei todo partido, dentro do guarda-fatos, voltei à realidade e descansei os amigos que me tinham procurado por todo o lado e que mais tarde haveriam de me oferecer uma miniatura do guarda-fatos como comemoração do feito. Era assim a Coimbra do meu tempo! Cultura, Política e Boémia em amálgama compatível e saudável, fermento de amizades vitalícias, condimento imprescindível na formação de gerações. Confesso a minha tremenda saudade!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

JORNALISMO

Quando era miúdo,vivia em casa dos Avós,á beira da ria de Aveiro e da avenida principal.Usava calças á golfe e empastava o cabelo ralo em toneladas de brilhantina,comprada na drogaria,para manter o penteado impecável e luzídio!Tinha também a obsessão de vir a ser bombeiro!Cada vez que a sirene do quartel tocava,ia rápidamente para a janela,ver os voluntários a correr, para ocuparem lugar no carro encarnado,que pouco depois passava em alta velocidade, com os tanques a largar água por todo o lado,de sirene estridente e todas as campaínhas disponíveis a badalar.Era um autêntico fascínio!Talvez porque essas cenas por vezes coincidiam com a hora de jantar,o bacalhau na brasa,passou a chamar-se bacalhau á bombeiro!Desfiado depois de assado,com batata cozida ás rodelas,muita cebola,ovo fatiado e muito azeite virgem,ainda hoje quando o como,me faz lembrar a saudável rivalidade entre os bombeiros das duas corporações,na ânsia de chegar primeiro e assumir a chefia da operação.Apeteceu-me muitas vezes pôr o capacete dourado,vestir a farda azul de machado pendurado e arranjar um canto no carro vermelho,que me levaria ao incêndio ou acidente que despoletava todo aquele frenesim!Apesar do respeito e admiração que ainda hoje sinto por esses bravos soldados da paz,tantas vezes estúpidamente injustiçados,a verdade é que ao longo dos anos e com a opção pelo curso de Medicina,fui perdendo o entusiasmo inicial ,ao constatar que havia outro tipo de missões com marcada componente altruísta e de cariz social.Foi então que terminado o curso,pensei sériamente tentar ser jornalista,desejo que só não se concretizou por absoluta falta de tempo e em função da mobilização para a guerra,castradora de todos os sonhos da minha geração!Era uma profissão que desde sempre me mereceu respeito e admiração,embora hoje tenha de reconhecer que está profundamente adulterada.A falta de rigor é frequentemente gritante,a falta de conteúdo gratuito, a responsabilidade e idoneidade não poucas vezes aligeirada.Mais censurável,é a tendência quase generalizada para impôr opiniões pessoais a qualquer preço,nem que para tal seja necessário coartar a liberdade de raciocínio,saturar entrevistados, espectadores ou leitores,penalizar eventuais dissidentes de opinião,institucionalizar a agressividade e até a má educação,em abordagens totalmente despropositadas e quase sempre desenfreadas!Autênticas alcateias esfomeadas de sensacionalismo,caem sobre as «vítimas»,perseguem-nas sem dó nem piedade,insistem em perguntas idiotas e fora de contexto,cruzam microfones,empurram parceiros, interrompem discursos e tentam induzir respostas,tudo no melhor estilo dos pica-miolos!Penso que este estilo e estas atitudes,em nada dignificam profissionais que em função do seu prestígio,exposição e poder mediático,deveriam ser os primeiros a dar o exemplo de civismo e cidadania plena,remetendo para plano secundário,tudo o que apesar de eventualmente rentável em termos de audiencia,não tenha qualquer intuito didáctico ou cultural.Felizmente ,ainda vai havendo excepções á regra,com uma qualidade, isenção e respeito pelo próximo que nada fica a dever aos velhos,consagrados e respeitados jornalistas,que me habituei a ler desde muito novo, em casa do avô republicano.A sua atitude,dignidade e postura social exemplar,foram determinantes e garantiram-lhes um lugar na história deste País.
É evidente que a evolução tecnológica na área da informação é tremenda,fomenta a agressividade cega e alimenta a competição desenfreada.No entanto é aqui,que a contenção verbal,o bom senso e o respeito pela postura e ideologia de terceiros,se deve manifestar e ser intenção primária dos verdadeiros profissionais da informação!Caso contrário,cada vez mais os jornais vão ficar nas bancas,as revistas serão exclusivamente côr-de-rosa ou de rasteiro teor sexual e o futebol passará a ter sessões contínuas nas televisões!O reconhecido poder dos «média»,não se compadece nem irá sobreviver, a atitudes impertinentes e muito menos a tentações prepotentes!Seria um exemplo deplorável,que deturparia de forma sistemática e irrecuperável,a informação correcta a que todos devemos ter acesso e poria em sério risco a evolução cultural a que todos temos direito!Penso que ninguem estará interessado em chegar a esta situação...

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

CASULA

Casula,era um pequeno aldeamento,no meio da enorme província de Tete,onde estava sediado um Batalhão de Caçadores e iria acontecer a minha primeira missão sanitária da guerra colonial.
Ao sair do avião,que aterrou na pista térrea,constatei a existência de meia dúzia de barracões de zinco num terreiro onde ondulava imponente a bandeira nacional e dormiam descansados e bem tratados,meia dúzia de cães do mato,rafeiros,adoptados pelos soldados.A fúria de regressar no mesmo avião que me tinha levado,do colega que eu ia substituir,não permitiu qualquer tipo de transmissão de funções!
Mala pousada em luxuoso quarto,utilizado a meias com o Capelão,senti estar a ser observado por dezenas de olhos curiosos e esperançados no apoio médico e psicológico que lhes poderia vir a dar,bálsamo ideal para os sacrifícios e riscos diários que se pediam áqueles bravos soldados.Em vez de uma enfermaria,havia uma minúscula tenda de campanha e um atrelado sanitário que ninguem se atrevia a abrir,para evitar perdas sempre penalizantes, para os enfermeiros responsáveis.Desde logo ficou combinado e autorizado pelo comandante,que se iria construir uma enfermaria condigna e funcional.Mobilizadas todas as boas vontades e especialidades dísponiveis,foi possível pouco tempo depois inaugurar um pavilhão ,que nos encheu de orgulho,com sala de consulta,uma pequena farmácia e uma enfermaria com doze camas,prontas a receber qualquer situação mais delicada.Simultâneamente,abriu-se o atrelado sanitário,bem fornecido de material cirúrgico e fármacos de toda a espécie, que viriam a ter uma importância crucial ao longo dos tempos.Consolidada a estrutura de apoio médico na sede do Batalhão,passei a fazer itenerâncias, em pequenos e velhos monomotores(D.O.),capazes de aterrar ou levantar em menos de 100 metros de pista,abanando por todo o lado,sem qualqure tipo de insonorização e que até deitavam fumo do equipamento de rádio!Antes de levantar vôo,não poucas vezes o piloto saltava nas asas,alinhando e restituindo um minimo de simetria á máquina voadora!Rodas travadas,motor no máximo de rotações,barulho ensurdecedor,alma entregue ao Criador!Logo que o travão era aliviado,o impulso gerado atirava a D.O. para a estratosfera em menos de cinquenta metros e depois era sempre para a frente!
Era necessário tambem,prestar assistência á população civil,encurralada num aldeamento com cubatas de barro e telhados de colmo,sob vigilância militar,da Pide e do Administrador civil, nativo,tão esperto quanto corrupto e desonesto,que vivia numa mansão na colina e que todos os dias escolhia criteriosamente a virgem que o iria acompanhar nas noites longas do trópico,para desespero do santo e ingénuo Capelão!
Um pouco mais á frente,o denominado e pomposo Hospital Civil,antigo posto de combate á doença do sono e respectivas moscas,agora adaptado ás novas funções.O apoio de dois enfermeiros,um deles Almirante de seu nome!Deslocava-me diáriamente no jeep que me tinha sido atríbuido,afastando-me cerca de cinco quilómetros do quartel,conduzido pelo meu motorista e acompanhado pelo Cabo-enfermeiro,sem qualquer tipo de arma,apesar dos protestos permanentes dos entendidos.Curiosamente,nos primeiros tempos,era total a indiferença da população.Até os miúdos que pareciam feitos de chocolate,nalguns casos com recheio nasal,que habitualmente são extremamente expansivos,pareciam condicionados por instruções vindas de alguem mais desconfiado ou politizado.Após uma noite inteiramente passada na tentativa coroada de êxito,de controlar um bébé em mal epiléptico por paludismo cerebral,tudo mudou como por encanto!Os miúdos passaram a apanhar boleia no meu jeep,de olhos brilhantes,sorrisos abertos e laringes afinadas!Os mais velhos,saudavam-nos de mãos postas e vénias solenes,enquadrando o inesquecível«SALEMA!»A confiança e a amizade mútua cresciam a olhos vistos,a ponto do Almirante me pedir para ser padrinho de um neto, a quem queria á força pôr o nome de Almirante Carlos Sereno!Ao fim de longas negociações e algums «cucas»,ficou apenas Almirante Sereno...
Para além de médico, passei a ser conselheiro,confidente e até o ponto de referência para frequentes protestos e lamúrias colectivas.Foram apesar das circunstâncias,tempos felizes,de realização profissional e em que me senti pela primeira vez,socialmente útil!
No dia em que deixei Casula por ter sido transferido,pedi ao piloto que sobrevoasse uma última vez o aldeamento.Testemunhei o adeus sentido dos meus amigos,percebi que um pouco de mim ficava para sempre com eles,num marco de vida inesquecível e experiência profissional ímpar!Mais tarde, quando a guerra terminou,recebi uma carta do meu amigo e compadre Almirante,manifestando amizade e gratidão pelo que tinhamos conseguido fazer em benefício daquela gente.Por portas travessas vim a confirmar o que desde sempre desconfiara.O Almirante,era um dos quadros regionais mais importantes da Frelimo!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

EVENTOS E EMPLASTROS

Consultei o dicionário e concluí:EVENTO- acontecimento,sucesso,êxito.Respiradouro ou resfolegadouro,ou orifício por onde entra o ar,comum nos cetáceos.EMPLASTRO--Pessoa inoportuna,achacadiça ou parasita!Em termos farmacológicos,é um medicamento sólido que adere á pele pelo efeito do calor
Vem isto a propósito,daquela criatura nortenha,sempre presente em qualquer evento,estratégicamente colocada atrás do locutor,olhar fixo na câmara de filmar,resistência notável a quem o vai agredindo,sorriso primário ,agora melhorado pela correcção dentária que alguem pagou.Onde quer que se adivinhe uma câmara de televisão,ele aí está,mantendo um ritual e satisfazendo uma apetência incontrolável!Alguém lhe pôs a alcunha de emplastro,pensando seguramente no medicamento que adere e actua na pele á base de calor,como o célebre emplastro leão,neste caso talvez dragão,ou as velhas papas de linhaça!É o tipo de emplastro ingénuo, primário e inofensivo,totalmente diferente de um sem número de emplastros disfarçados,parasitas inoportunos e perigosos,colocados estratégicamente e com ar desinteressado,mas com um olho no burro e o outro na câmara de televisão.A sua imagem passará discreta mas eficazmente em todos os telejornais,dando-lhes gratuitamente a notoriedade desejada e essencial aos seus designios,num País em que o aparecer na televisão ,ainda é o factor ideal para a promoção da imagem social e a consequente requisição,para os mais variados eventos!Confesso que embirro solenemente com a palavra evento,mas não tenho outro remédio senão aguentar a moda,consequente a um sem número de encontros sociais,de lazer,de trabalho,de formação,de marketing ou de pura rotina.O sucesso do evento é como o resfolegar da baleia,visivel a milhas de distância,tão respeitável quanto gracioso,inesquecível para quem alguma vez teve a sorte de assistir.Os custos, por vezes exorbitantes,diluem-se nos lucros da empresa e justificam-se pela satisfação dos colaboradores,ao mudar o local de trabalho extraordinário não remunerado,pela promoção social que implicam e pelo acesso a locais e acontecimentos,que o seu parco ordenado,que se mantém fixo por causa da maldita crise,nunca lhes permitiria desfrutar.
Secundarizam-se calma e estratégicamente os eventos familiares,inoportunos,entediantes,desgastantes e nada aconselháveis a quem tem obrigação restrita e prioritária de contribuir e acompanhar o crescimento da empresa.É a isto que penso poder chamar a política do emplastro!A hipnose dos eventos,permite ultrapassar todo o tipo de injustiças e atropelos sociais,fomenta e alimenta o parasitismo e até o despotismo patronal!Mas atenção,em termos farmacológicos,repito uma vez mais, que o emplastro é o medicamento que adere á pele pelo efeito da libertação de calor e como tal não se deve excluir alguma queimadura mais profunda,dolorosa ou incapacitante!Aí não haverá evento que resista!
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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

LIVRO DE RECLAMAÇÔES

Um País governado em ditadura durante quase cinquenta anos,é natural que tenha uma enorme vontade de aproveitar até ás ultimas consequencias,a liberdade que lhe foi devolvida de mão beijada!No entanto é tambem grande a tentação de a transformar em libertinagem,num exercício pseudo-democrático muito pouco recomendável.
Vem isto a propósito do livro de reclamações,instituído há uns anos,presença obrigatória e devidamente publicitada em qualquer instituição que preste serviço público.Citando o pároco amigo do Chefe Lucas dos Santos,é mais «um frenómeno inospinado que acontece no princípio dos séculos para atentar as almas»!E atenta as almas,mesmo as mais cândidas,porque como seria de esperar,é mal utilizado,a maior parte das vezes sem qualquer razão,quase sempre transformado em escape de frustrações,bálsamo de psicoses e até em atestado de má educação!Protesta-se por tudo e por nada,mais por nada do que por tudo,alimenta-se o prazer mórbido de aborrecer o próximo,dá-se continuidade a uma política de denúncia desenfreada tendente a colmatar deficiências básicas de responsabilidade estatal,nunca assumidas e convenientemente tranferidas para terceiros,quase sempre sem culpa no cartório.
A febre de reclamar é de tal ordem, que põe em causa princípios básicos de tolerância,amizade,solidariedade e principalmente de crítica construtiva.O protesto generaliza-se e a reclamação é rápidamente promovida a instituição!Reclama-se por um atrazo mínimo ,sem se ter o cuidado prévio de perceber a causa,protesta-se porque o funcionário riu quando devia estar sério,critica-se indiscriminadamente por ciúme,por inveja,por raiva,porque sim e até por vício!Todos os protestos devem ser enviados a entidades específicas,que os julgarão e irão decidir das penas a aplicar aos prevaricadores.Justifica-se assim a própria existência e principalmente o custo acrescido para a despesa do estado e do imposto para o contribuinte!Uma autêntica «congeminência político-social»como diria calma e sábiamente o meu saudoso Pai.
É evidente que sou o primeiro a concordar com a critica e o protesto construtivo,bem fundamentados e tendentes a melhorar serviços e atitudes!Para tal é necessário e urgente,criar regras, que possam valorizar e disciplinar a liberdade de opinião e expressão,na génese de uma crítica correcta e construtiva.
Até lá,será frequente a falta de civismo que ainda vai caracterizando uma boa parte da nossa sociedade,que em nada contribui para uma postura responsável,moderna e verdadeiramente democrática!Já agora,aproveito para apresentar um veemente protesto ,em forma de reclamação:É incrivel que ainda não se tenha instituido um livro de contra- reclamações,onde possa ser denunciado e responsabilizado todo o protesto gratuito e sem qualquer ponta de razão!Valeu?

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

OUTONO

Da janela do meu quarto, onde escorrem gotas de chuva miudinha e teimosa,assisto á queda das folhas amareladas dos carvalhos rugosos e envelhecidos,empurradas para o vôo ondulado de despedida,pelo vento frio de leste que as arrancou dos galhos ressequidos.Ao longe,na montanha mais cinzenta,um timido raio de sol tenta romper o tecto de nuvens pesadas,procurando manter o arco-íris que domina o vale ainda sonolento.Os pássaros abrigados nos beirais,vão piando sem força para cantar,resmungando pela sorte que os espera,ansiando o regresso da primavera!Os arbustos, tambem eles desfolhados,enchem-se de gotas de água que escorrem para o solo,formando riachos de caudal cada vez maior,que arrastam a poeira de um verão já distante e as folhas mortas e apodrecidas.Chegou o Outono!Apesar do célebre buraco de ozono,o ciclo da natureza renova-se todos os anos,fiel ao principio das quatro estações e ás suas caracteristicas singulares.Esta é uma estação equilibrada,cheia de tons quentes e dias mornos,de folhas caducas e árvores que se despem despudoradamente.Prenúncio de um inverno que se aproxima,é tambem a época ideal para recuperar energias consumidas ao desbarato, em verões escaldantes,carregados de suores e abusos de toda a espécie!Paira no ar alguma tristeza,enche-se a alma de melancolia e o espírito inunda-se de poesia.Ouvem-se sonetos por todo o lado,pintam-se quadros de tons suaves,sente-se o cheiro de terra molhada,as noites são mais longas e escuras,os dias mais curtos e mesclados.Retiram-se as lãs da naftalina,assam-se castanhas em potes de barro,mata-se o porco já bem tratado,guarda-se a carne na salgadeira e fuma-se o chouriço a morcela e até a alheira!Depois tudo vai perdendo alguma graça á medida que se aproxima o Inverno sorrateiro,restando a esperança, que é certeza, que para o ano haverá novo Outono, por ordem expressa da natureza.Pois é, a vida tambem tem o seu ciclo de estações que se esgotam em rápida sequencia e que infelizmente não se renovam!A maior parte das vezes o Outono chega sem que tenhamos vivido em pleno a Primavera,sem que tenhamos investido sériamente no Verão.Só quando o frio enruga a pele e a chuva desgasta os ossos,começamos a ter a noção da proximidade do Inverno, não desejado,mas sem qualquer hipótese de rejeição!Estou nessa fase e confesso o meu desagrado e a minha surpresa.Cheguei quase sem dar por ela,mas agora que tenho a noção exacta do pouco tempo que resta,apetece-me viver intensamente,minuto a minuto,se possível dispensando o sono,para ter hipótese de voltar aos caminhos da minha aldeia, sentir o cheiro da lenha queimada na lareira,ver o fumo branco a sair das chaminés,sentir o ondular das searas,ouvir o murmúrio dos choupos e pinheiros e correr nos campos carregados de girassóis!Quero o velho cuco a cantar,as margaridas a crescer e as amendoeiras em flôr!Quero ouvir as badaladas do sino de bronze da minha igreja e o apito do combóio no apeadeiro!Já agora ,que a água do mar me venha molhar os pés,o marulhar das ondas me encha os ouvidos e que o luar de Agosto me ilumine o caminho que ainda me espera!É utopia?Será pedir muito?Eu depois prometo contar...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O DEBATE

Apesar de totalmente desiludido com as atitudes e postura dos políticos caseiros,resolvi tomar atenção ao anunciado debate televisivo,entre os representantes das duas maiores centrais sindicais,membros do governo,do capital e da economia.Tinha alguma esperança de poder vir a ser elucidado sobre a situação real do Paìs,numa discussão isenta de interesses pessoais,partidários ou politicos,que me pudesse motivar para os sacrifícios que me são pedidos,ou melhor ,que me querem impôr,numa partilha responsável com todos os parceiros de desgraça.Pura ilusão meus senhores!De um lado os responsáveis máximos do sindicalismo nacional,esgrimindo argumentos um tanto ou quanto enferrujados,jurando consonância de objectivos,anunciando a greve geral redentora!Ao seu lado,o patrão do patronato,bem enquadrado no cenário,ar preocupado,atento a qualquer pormenor que pudesse pôr em causa direitos adquiridos,ou seja, os lucros exorbitantes de um sem número de empresas!Na sua frente um jovem e inocente professor de economia,um ministro recidivante do actual governo e um anafado,bem remunerado,aposentado no activo,representante não se sabe muito bem de quê ou de quem!Na plateia ,alguns representantes das autarquias e um sem número de ilustres convidados da apresentadora,bem apresentada,sentada num banco,em postura mais ou menos sensual e equidistante dos intervenientes.Foi neste cenário que se afirmaram posições ,defenderam atitudes, venderam ilusões e apenas se disseram as convenientes meias verdades!Os brilhantes raciocínios,foram interrompidos por longos intervalos publicitários,ou pelas intervenções normalmente pouco oportunas,da moderadora,tambem ela ávida de protagonismo que ajude a subsidiar o programa e a justificar mais alguma comenda.A paciência foi-se esgotando ao longo do tempo,farto de lugares comuns,da defesa do indefensável e principalmente da desfaçatez dos crónicos e iluminados clientes assíduos do parasitismo social,pregadores repetitivos de políticas esgotadas.Confesso,humildemente, a minha total incapacidade para aguentar o suplício até ao fim!Antes de adormecer,interroguei-me sobre o que nos espera,entregues a meia dúzia de eleitos,a uma dúzia de comentadores e á elite de bancários e gestores.Talvez por isso, sonhei que cantava a balada da despedida e ao acordar percebi que o nosso fado é eterno!

terça-feira, 12 de outubro de 2010

PALACE DE VIDAGO

Anunciada há muito tempo como convinha,mas só agora concretizada,a inauguração do Palace Hotel de Vidago,fez-me lembrar as noivas em segundas núpcias,vestidas de branco,recauchutadas para o efeito e parceiras de cama de alguns convidados!Também aqui,há várias semanas, dezenas de ilustres artistas da nossa praça,eram convidados a testar as novas instalações e a admirar a decoração badalada aos sete ventos,da responsabilidade de iluminados gestores do gosto alheio.Passeavam pelos corredores pintados de fresco e constatavam a fisionomia alterada do velho parque,amputado de algumas árvores mais velhas,derrubadas por intempéries,ou pela mão humana pouco crítica.
O campo de golfe,agora com 18 buracos,fazia a delícia de banqueiros de barriga cheia de «spread»e sapatos protegidos pelas taxas de juro,gestores no activo e no passivo,milionários nacionais,espanhois e internacionais,antecipando o que se deseja venha a ser mais um «ponto de encontro global»do capitalismo,dos seus agentes e das gentes de bem viver,comer e conviver!O povo,o bom povo transmontano,foi autorizado,por especial favor,a visitar o jardim que já foi deles,numa demonstração inequívoca de cínico e hipócrita gesto democratizante.
Tinha chegado, finalmente, o dia da inauguração oficial ,cem anos depois de uma falhada inauguração real!O senhor primeiro-ministro,não deixou créditos por mãos alheias e sem qualquer intuito eleitoralista,descerrou mais uma lápide de granito do Bragado,com data e nome gravados,precedendo magnífico discurso de louvores ao capital,que apesar da crise,se mantem activo e aberto a tudo o que possa ser rentável e passível de subsídio.
Meia dúzia de paspalhos,fora dos portões do parque,aguardaram pacientemente,que a comitiva de uma dúzia de carros do povo ao serviço dos governantes,desfilasse rápidamente,sem direito a qualquer gesto ou aceno mais solidário, com as reais dificuldades da maioria das pessoas deste pobre País!
O automóvel do primeiro-ministro parou frente à escadaria,subida descontraidamente,pelo ilustre governante,exibindo um fato provávelmente confeccionado em Paris, olhar distante mas atento a qualquer eventual buraco mais perigoso,que se pudesse juntar ao buraco do orçamento,a que a oposição de direita e até de esquerda se refere diária e injustamente!Flashs,fotografias em todas as posições e captando todos os gestos,garantindo a importância e solenidade do acto,abrilhantado pelo aplauso unânime e vibrante do patronato, convocado e convidado para o efeito.Efeito garantido e aval concedido ao mais alto nível,para o consumo de largos milhões de euros,numa remodelação nada justificável,muito menos em plena e badalada crise,aqui totalmente secundarizada e desprezada,pela vaidade dos gestores e a necessidade de aplicar e disfarçar lucros monumentais,consequentes á ingestão da cerveja que o Zé vai bebendo,para afogar as mágoas!
O incómodo numero de desempregados,as dificuldades cada vez mais evidentes da classe média,os cortes salariais,o congelamento de pensões,o aumento dos combustíveis,a redução das deduções fiscais e das ajudas sociais,o aumento permanente dos impostos e a mais que provável recessão,deixam de ter qualquer significado!O importante e redentor, é que os hoteis de luxo se multipliquem,os campos de golfe se redimensionem e os «spas» não sejam esquecidos,complementando os justos prémios de produtividade,assiduidade,disponibilidade e saudável e democrática rotatividade!É altura ideal para esquecer quantos já não conseguem gritar um protesto,seguramente devolvido pela fachada do majestoso hotel,ou impedido de chegar ao destino pelos atentos,numerosos e talvez bem pagos,seguranças!É esta a triste realidade do meu Paìs!

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

SITUAÇÕES CRÌTICAS NA URGÊNCIA

Como é fácil de calcular,o Serviço de Urgência de um grande Hospital,tem necessáriamente alguns casos,que pela sua especificidade,raridade ou bizarria,ficam para sempre na memória dos intervenientes.A sua descrição resiste a gerações de médicos,alertando-os para situações em que a atitude cirúrgica correcta,o bom senso clínico e muitas vezes a capacidade de decisão ou improvisação,têm papel preponderante na sua resolução.
Recordo a entrada directa no S.O. de um alto quadro de uma conhecida Instituição,que resolveu utilizar um belo punhal de cabo de marfim,para testar a resistência da sua grelha costal e principalmente do seu músculo cardíaco!A entrada no bloco operatório foi imediata,de punhal pulsátil,tamponando uma ferida do ventrículo esquerdo,posteriormente suturada pelo competente e polivalente Cirurgião-Chefe Dr. Gomes Rosa,com a nossa humilde colaboração.Um post-operatório sem problemas,permitiu o regresso rápido ás suas funções,com a proibição absoluta de se aproximar de qualquer tipo de arma branca ou similar!
Também numa madrugada que nunca mais esqueci,o médico que estava de vela,veio ao quarto onde descansava um pouco,alertando-me para uma situação estranha,que ele não entendia bem,pedindo a minha observação,para poder acreditar no que pensava ter visto!O meu acordar tradicionalmente resmungão,terminou ao constatar a presença de uma doente relativamente nova,com ar assustado e delirante,a quem não foi difícil fazer o diagnóstico de ruptura uterina,permitindo a saída pela vagina de uma ansa intestinal já necrosada!Situação de brutalidade difícil de imaginar e aceitar,obrigou uma vez mais o Cirurgião a intervir de imediato.Na exploração da cavidade abdominal,constatou-se a existência de um feto morto,aparentando ter cerca de cinco meses,totalmente fora de um útero desfeito e navegando entre as ansas intestinais!Á delicada e complexa intervenção cirurgica,seguiu-se um post-operatório turbulento,com a mais que prevísivel septicémia,que com muito esforço,não menos antibióticos e alguma sorte, se conseguiu debelar.Durante todo o tempo de internamento,a doente negou terminantemente qualquer manobra abortiva,seguramente na génese daquele descalabro.Curiosamente,alguns anos depois,no consultório do Sindicato do Comércio e Indústria em Lourenço Marques onde eu fazia consulta para tentar complementar o miserável vencimento de Alferes-Médico,entrou silenciosa mais uma doente.Quando levantei os olhos da ficha de identificação,deparei com um rosto conhecido,que não conseguia referenciar a qualquer situação ou local.Foi então que de sorriso triste e alguma comoção na voz,se identificou como sendo a doente operada na Urgência de São José!Tinha percebido que eu trabalhava naquela Clínica e achou por bem ir ter comigo, para finalmente assumir as manobras abortivas que sempre negara!Estupefacto, não consegui reagir.Enquanto tentava alinhavar o discurso adequado, para apesar de tudo lhe agradecer a concordância tardia e até talvez a aliviar de algum sentimento de culpa,a senhora levantou-se,sorriu uma última vez e saiu porta fora,tão silenciosa quanto tinha entrado!Confesso que a consulta terminou ali e que durante algum tempo andei sem rumo
pelas ruas da cidade,digerindo o que acabara de me acontecer e pensando como é complexa e imprevísivel a reacção do ser humano!
Frequentes e de natural predomínio nocturno,tremendas bebedeiras,que terminavam nos balcões, após diálogos de surdos e muita coramina intravenosa.Os «desvios sexuais»obrigavam muitas vezes os envergonhados prevaricadores,a recorrer á urgência,para tentar resolver situações mais ou menos delicadas,quase sempre mobilizadoras da curiosidade geral e do riso difícil de conter.Eram relativamente frequentes,acidentes de percurso ,envolvendo os mais diversos objectos,como as cargas de esferográficas intra- vesicais,garrafas de sumo ou cerveja e até um frasco de Tofa,que deu um trabalhão para ser retirado de um rubicundo artista,que resolvera beber café, pelo sítio menos conveniente!Corria á boca cheia,a história de um cavalheiro que deu entrada no balcão de roupão de seda,perfeitamente atrapalhado e envergonhado.Quando lhe perguntaram o que o tinha levado ali,afastou com gesto afectado o roupão que o cobria,pondo a descoberto a ramagem de um magnífico nabo,que segundo afirmava,entrara acidentalmente, por onde devia sair depois de convenientemente digerido!Desta não fui testemunha,mas lá que se contava,contava!
Muito mais situações poderia descrever,umas hilariantes,outras profundamente tristes e desgastantes.Era assim aquele Serviço de Urgência,escola de virtudes,paredes meias com o desfile da desgraça e miséria humanas,que a sociedade procurava ignorar,mas que era uma realidade perfeitamente palpável,naquelas noites de vígilia!Mas mais grave e chocante do que tudo isso,era a chegada, em épocas festivas ou de férias,dos idosos de olhar triste e ternurento,abandonados por tudo e por todos,ávidos de um gesto mais carinhoso,em fim de percurso terreno!Guardo religiosamente alguns desabafos e até confidências,dessas pessoas, já sem força para reagir ou gritar aos sete ventos, a ingratidão familiar e social de que eram vítimas e com a percepção exacta de como se tornavam indesejáveis em qualquer lado!Para eles ,havia normalmente uma maca excedentária,um naco de pão, uma sopa morna e um pouco do carinho que ia sobrando,mas faltava-lhes a esperança de vida para alimentar a alma e impedir que a luz do corredor se apagasse precocemente!Esses, eu nunca vou esquecer!

terça-feira, 28 de setembro de 2010

A MINHA ÉQUIPE

Investir numa especialidade cirúrgica é tudo menos fácil!Concluida a ultima,de um interminável numero de provas públicas,somos declarados especialistas,ou seja,passamos a ser totalmente responsáveis e autónomos pela nossa actividade cirúrgica.Foi o que aconteceu comigo,abrindo-me perspectivas de actividade privada, em complemento com o trabalho hospitalar.Foi então necessário adquirir uma caixa de ferros cirúrgicos e simultâneamente conseguir a colaboração dos elementos capazes de constituir uma équipe.Se em termos futebolisticos fui pouco feliz na opção clubistica,neste caso,contra todas as expectativas ,tive sorte!Consegui uma boa caixa de ferros,num fabricante amador,o que naturalmente permitiu uma poupança significativa,sem prejuízo de qualidade.Mas melhor que isso,foi o facto das pessoas contactadas para a constituição do grupo,que eu considerava as melhores nas suas funções,me terem dado o sim!A primeira e extremamente grata surpresa,foi a anuência da Dra Cristina da Câmara,anestesista consagrada,Directora do Serviço de Anestesia do Hospital de São José,pioneira de várias técnicas anestésicas e de cuidados intensivos,de personalidade vincada, mas de trato extremamente educado, temperado por um lindo e terno sorriso enxertado no gesto elegante e ar distinto,num toque de classe raramente conseguido!Chefe carismática do seu grupo de anestesistas e intensivistas,de prestígio e capacidade profissional reconhecidos e admirados,aceitou com toda a simplicidade ser a minha anestesista!Não é difícil calcular o orgulho que senti por poder contar com a sua colaboração e a certeza antecipada de que não poderia ter tido opção mais feliz!Se necessário fosse ,os já muito longos anos de trabalho em équipe,são testemunho inequívoco da sua qualidade e disciplina profissionais,que justificam a admiração dos doentes e me transmitiram desde sempre uma sensação de segurança e bem-estar, libertando-me totalmente para as tarefas cirúrgicas,sem ter de me preocupar minimamente com as informações monitorizadas.A minha eterna gratidão,a minha sincera admiração e a amizada gerada na lição de vida que me deu ao aceitar o meu convite,fortalecida pela nobreza do seu carácter e eternizada pela qualidade e lealdade do seu trabalho!Depois, era fundamental encontrar um ajudante de mão cheia,leal,honesto,sintonizado com o espírito que se pretendia para a équipe e com uma capacidade de encaixe, suficiente para aturar as minhas birras de debutante.Também aqui a sorte não me abandonou!Encontrei no Prof,Freire de Andrade,mais do que o ajudante ideal,um amigo honesto e leal,que ao longo destes anos me tem acompanhado nas horas boas e menos boas,determinado em contribuir com as suas qualidades humanas e de trabalho,para o objectivo comum,de bem servir os nossos doentes.Os seus vastos conhecimentos teóricos,a sua experiência cirúrgica,a sua opinião sensata e a permanente disponibilidade,são factores determinante nos bons resultados obtidos e no saudável ambiente em que temos vivido!Tudo isto contribui de forma salutar para uma amizade que muito me honra.Finalmente impunha-se completar o grupo,com uma boa instrumentista,naturalmente familarizada com as técnicas e instrumentos neurocirúrgicos.Desde os primeiros passos no Serviço de Neurocirurgia,que me habituara a admirar ,o extraordinário trabalho,a disciplina profissional e o carisma da Enf.Chefe do Bloco!Tudo girava sobre rodas.As ordens,dadas num tom de voz firme,mas deixando transparecer carinho e admiração pelas suas subordinadas,não deixavam qualquer hipótese de contestação.A sua postura profissional e as suas qualidades humanas,fizeram dela uma figura respeitada e elemento essencial no bom desempenho do Serviço.Daí a minha grande admiração pela Alzira,elemento ideal para completar o grupo,embora no fundo eu soubesse que não podia alimentar grandes esperanças de poder contar com ela.Tentando ser convincente,mas na realidade perfeitamente atrapalhado e mais do que preparado para um doloroso não,calcule-se o meu espanto quando após breve período de reflexão,me transmitiu o sim!Claro que fiquei feliz da vida e de ego vaidoso, na razão directa do ciúme que se adivinhava noutros colegas!Foi assim que nasceu a nossa équipe.A qualidade notável de todos eles,é factor decisivo no equilíbrio emocional e bom ambiente,capazes de facilitar a rentabilidade e bons resultados obtidos ao longo destes anos.Todos eles me obrigam a tentar melhorar permanentemente,alguma qualidade que possa ter em termos cirúrgicos e humanos!Quando um dia as cegonhas que me puseram neste mundo,esticarem o pescoço e baterem as asas para me devolverem ás origens,darei ordem para voarem em círculos,anunciando a partida e disfarçando alguma lágrima saudosa, emocionada e grata,por vos poder ter tido como amigos e colaboradores!

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

SERVIÇO DE URGÊNCIA

Proliferam as séries televisivas sobre os serviços de urgência,com casos clinicos programados de acordo com a sensibilidade e emotividade das plateias,exageradamente romanceados e «sexualizados»,transmitindo uma imagem deturpada do que é na realidade um Serviço de Urgência!Eu, como tantos outros,trabalhei durante muitos anos na Urgência do Hospital de São José,para onde era destacado uma vez por semana,cumprindo vinte e quatro horas de serviço,tão desgastante quanto rentável em termos de satisfação pessoal e aprendizagem permanente e real,à custa de uma saudável tradição que os mais velhos respeitavam, ao transmitir os seus conhecimentos. Independentemente das amizades geradas pela solidariedade e espírito de grupo existente e patente em situações mais delicadas,a Urgência,ou melhor,o Banco de São José,era uma verdadeira escola de ciencia e de virtudes,comandada pelo Cirurgião-chefe,personagem quase mítica,que para chegar áquela posição,tinha tido de passar pelo crivo de exigentíssimos concursos,demonstrando os conhecimentos técnicos, capacidade de chefia e bom-senso clínico,garantia de potencial na resolução dos problemas inerentes a um serviço de urgência.As suas ordens eram integralmente respeitadas e a sua omnipresença era reconfortante e sinónimo de ajuda nunca negada.A visita aos doentes internados,era feita várias vezes ao dia e sempre que um caso mais raro ou de mais díficil diagnóstico era detectado,mobilizavam-se os internos mais novos para a história clínica de caras,discutida na enfermaria e dissecada no recato do quarto do cirurgião,onde normalmente o infeliz historiador, levava autênticos arraiais de «porrada científica»!Foi à custa de uma cena desse género,em que eu fui o bombo da festa,que estou em condições de quase garantir que nunca mais deixarei de equacionar o diagnóstico de trombose da mesentérica!O trabalho era árduo e estendia-se dos balcões de atendimento,à sala de observação,às salas de operações,passando pela pequena cirurgia,onde todos aprendiam os nós cirúrgicos e as suturas bem coaptadas.O afluxo de doentes, por vezes asfixiante,ia diminuindo á medida que a noite avançava,permitindo que à uma da manhã o vela entrasse de serviço,com a missão quase impossível de aguentar todas as secções,até às oito horas,enquanto a outra malta se dirigia para a velha sala de jantar.A par dos magníficos bifes,preparados carinhosamente e apimentados pelas tradicionais piadas das velhas empregadas,tinha lugar uma troca de impressões colectiva e a discussão dos casos clínicos mais relevantes.Nós, os mais novos, quase extasiados com tanta ciência posta na mesa,bebíamos sôfregamente os ensinamentos que nos iriam ser úteis para toda a vida!A«aula» terminava normalmente com um período reservado á cultura geral,ás novidades sociais, políticas e profissionais e também aos mexericos e anedotas,responsáveis por sonoras gargalhadas,que se prolongavam até aos quartos,onde merecidamente e sempre que possível,retemperávamos energias.Esta saudável e rotinada tradição,viria a ter fim,quando em pleno Abril democrático,os maqueiros e empregados auxiliares,num acto de pura libertinagem,invadiram e tomaram posse da velha sala.Assumo sem qualquer problema,o tremendo desgosto que senti e a revolta que quase ia pondo em causa os princípios democráticos em que sempre acreditei.É que ao contrário da euforia daquelas revolucionárias criaturas,iludidas pelo famoso «poder popular»,eu tinha a certeza que acabara naquele momento, sem honra ou benefício para ninguém,a tradição,a mística e a função didáctica,salvaguardadas ao longo dos anos e de várias gerações!Assim aconteceu!A sala passou a bar,o velho relógio desapareceu e as estruturas foram progressivamente alteradas.Até a chefia do respeitado Cirurgião,se diluiu por vários chefes das especialidades,alijando-se responsabilidades,onde cada um tentava puxar as brasas ás suas sardinhas e as sardinhas eram muito mais que as brasas!Enquanto chefiei uma èquipe de Neurocirurgia,na Urgência,fomentei reuniões para discussão de casos clínicos e apresentação de temas de interesse colectivo,escolhidos préviamente.Embora tenha sido reconhecida utilidade a essa iniciativa,a verdade é que lhes faltou sempre o ambiente da velha sala de jantar,o peso da tradição quase centenária,o carisma do Cirurgião-Chefe e o sabor dos bifes da Carminda!

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

HUMOR DO CHEFE

Na sequência do que escrevi sobre o humor do Dr. Lucas dos Santos,lembrei-me de vários episódios que aconteceram ao longo dos anos.Recordo com saudade,uma célebre e acidentada viagem rumo ao Monte da Soalheira,em pleno Alentejo,que tinha sido adquirido há pouco tempo e como tal impunha-se o transporte do mobiliário seleccionado e comprado para o efeito.Nada melhor que o magnifico Saab,para o levar!Ainda hoje estou para saber como me consegui sentar entre cadeiras e secretárias, todo encarquilhado e mal conseguindo respirar!Só o facto de me ir revesando com o Maia Miguel no lugar da frente,permitiu ultrapassar tal prova de resistência!Estava escrito no entanto, que nem tudo iria correr pelo melhor.Foi mandado parar por um polícia de viação,por ter atropelado um traço contínuo e só o facto de ser médico da corporação, o safou da multa e da eventual apreensão de carta!Um pouco mais á frente,a embraiagem recusou colaboração,limitando a caixa de velocidades á segunda e á quarta,sem qualquer hipótese de por exemplo,se meter a marcha- atrás!O diagnóstico foi feito de imediato:era o óleo da caixa que aquecia e nada como prosseguir viagem em ritmo mais lento,permitindo arrefecer progressivamente o lubrificante e como tal retomar as funções da caixa, na plenitude.Não é dificil calcular a epopeia para chegar ao Monte,onde após visita pormenorizada,descarregámos a mobília.Depois de colocar com algum esforço um tanque de cimento,num ponto mais alto,tivemos de empurrar o desgraçado Saab,possibilitando as manobras necessárias ao regresso a Lisboa,arrancando em segunda e mantendo o ritmo em quarta!Viémos a saber depois que o óleo estava inocente,por reduzido quase a zero.Seguramente que os responsáveis da Saab não deixaram de aproveitar o incidente para comprovar a eficiência do seu material!Eficiente,foi também a manobra adoptada para pôr fim a desgastante consulta,que se prolongava pela noite dentro e em que o risco de ver inimigos em vez de doentes, era uma realidade.Pediu para ser conduzido em cadeira de rodas até á porta de saída,assumindo um fácies doentio e pedindo a remarcação dos doentes que faltava observar!Recuperou rápidamente e um bom jantar acabou de vez com o incidente,que ficou célebre e registado nos anais do HCVP.Foi o desgaste provocado pelo elevadíssimo número de doentes que observava e a intensidade das cirurgias que efectuava,que o levou a passar pelas brasas,numa reunião post-prandial na Gulbenkian,perante o desespêro da Dra Cristina da Câmara que o acompanhava e se esforçava disfarçadamente para o acordar,ou pelo menos para evitar que um ressonar pouco oportuno,acabasse com o discurso monótono e prolixo do Administrador e a consequente inviabilização da oferta de material para o Serviço.No fim,como é costume, tudo acabou bem e o equipamento foi concedido a tempo e horas.Onde não houve concessões,foi na entrevista concedida á Capital,com honras de fotografia na primeira página,onde o comentário que lhe pediram sobre a técnica de recuperação de lesões medulares,que um chinês se propunha ensaiar no HCVP,foi tão sintético quanto incisivo:É UMA VIGARICE! E era,de tal maneira que nunca mais ninguem ouviu falar do chinês e muito menos da sua técnica!Japonês era o meu humilde Datsun100A,requisitado e transformado em Fórmula 1,pelas ruas da capital.De buzina em altos berros e piscas intermitentes,ignorando vermelhos e cruzamentos,transportou o Chefe,com a máxima urgência ,aos cuidados intensivos da Clinica da Cruz Vermelha,para lhe ser administrado na veia, potente analgésico,pondo fim a dilacerante dôr de dentes!A preocupação que a crise e o aparato provocou em todo o mundo,terminaria num sorriso aliviado e descontraído do paciente e no reconhecimento absoluto das minhas qualidades de condutor de veículos ligeiros,transformados em velozes ambulâncias!Rapidez era o que se pedia,para ultrapassar um atraso na chegada ao bloco operatório,ainda mais,condicionado pela fila na entrada para o elevador da Clínica.Ouviu-se então um «cuidado que há bomba!»que afastou as pessoas á procura do local do rebentamento,permitindo a nossa entrada no elevador e a chegada a horas ao bloco operatório,onde vivemos muitas horas felizes e algumas preocupantes.Destas, não resisto a contar uma cena, que para além dos suores frios,poderia ter trazido outro tipo de complicações.Numa bela tarde de um fim de semana,foi necessário operar um jovem paciente ,com um enorme hematoma temporal,que tudo levava a crer ser espontâneo,ou consequente á hemorragia de pequeno vaso não visualizável.O médico assistente do doente, pediu autorização para assistir á intervenção,que de imediato lhe foi concedida.A craniotomia e abertura da dura-máter,decorreu sem qualquer incidente,com a rapidez e elegância a que o Chefe nos habituara.O problema começou,quando puncionado e aspirado o negro hematoma,ficámos mais ou menos estarrecidos,com um magnífico exemplar de aneurisma da cerebral média ,pronto a sangrar desalmadamente,a qualquer momento!Impunha-se a clipagem rápida,mas infelizmente os clipes existentes em stock não eram os mais adequados!Foi então dada ordem á instrumentista, para rápidamente se deslocar em ambulância,ao Serviço de Neurocirurgia do Hospital de São José,tentando o empréstimo do clip ideal para aquela situação.Só que ninguém se lembrou que era fim de semana e a chefe do bloco não estava,o que obrigou a nova viagem até Moscavide,para a ir buscar.Como é fácil de calcular,a situação prolongou-se durante cerca de duas horas.A par dos suores frios que teimavam em me inundar a testa, sempre que olhava para a simpática bolinha,o cirurgião inventou toda a espécie de manobras de diversão e sublimação de maus agoiros,que distrairam o espirito do médico assistente, evitando possível pânico, nada aconselhável naquela dificil conjuntura!Não há memória de hemostase tão exaustiva,nem suspensão de dura tão perfeita e muito menos de aspirador que tanto funcionasse, sem nada aspirar!O nosso colega nunca se apercebeu da delicada situação,o clip acabou por chegar,o aneurisma foi brilhante e definitivamente excluído de circulação e o paciente fez uma rápida recuperação.Quanto a nós ficámos com a garantia de ter mais uma história real, para contar aos nossos netos.Foi de CHEFE!

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

CHEFIAS

Todo o mundo sonha ser chefe,mesmo sem ter a mínima noção do que implica uma chefia.Era bem melhor que a maior parte das pessoas se contentassem em ser chefes de si mesmo, minimizando os problemas das verdadeiras chefias.Infelizmente não é assim,já que raros se contentam com a sua autonomia e independencia naturais.Invejam tudo e todos que lhes possam fazer sombra,imaginam-se chefes trezentos e sessenta e cinco dias por ano,sem sequer terem a preocupação de equacionar aptidões,responsabilidade e o desgaste inerente a esses cargos!Alimentam falsas amizades,assumem muitas vezes a sabujice,optam por todo o tipo de critica destrutiva e se necessário fôr traem despudoradamente o melhor amigo.Triste realidade assumida por uma sociedade em que a competitividade desenfreada,é estimulada desde a fecundação,fomentada na Escola Primária,cimentada na Secundária e refinada na Faculdade!As pessoas transbordam de«conhecimento dirigido»,em detrimento da cultura geral e da adopçaõ de princípios que deveriam ser intocáveis.Daqui resultam personalidades deformadas,dirigidas obsessivamente para um objectivo pré-definido,em permanente conflito com tudo o que os possa desviar minimamente dessa intenção prioritária.A necessidade de afirmação social,é incontrolável,a maior parte das vezes sustentada pela manipulação grosseira de iniciativas e resultados,assumida e utilizada até á exaustão.A vaidade isola-os em redomas de cristal,imunes á desgraça alheia,salvaguardados de eventual culpa que nunca assumem.O prestigiado e profissionalizado chefe,saltita de empresa para empresa,ao abrigo do reconhecimento partidário e da hierarquia no poder!São as chefias exaltadas e louvadas por todo o mundo e também pelos média do regime,colocados estratégicamente em postos chave.Felizmente que no meu caso,tive a sorte de ser chefiado por outro tipo de pessoas.A sua personalidade,a sua estatura moral,a inteligência posta ao serviço do conhecimento e os resultados, não poucas vezes camuflados por uma humildade quase envergonhada,são prova cabal da competencia e rentabilidade dos verdadeiros chefes.As coordenadas que me foram incutidas pelas chefias familiares,tiveram uma sequência feliz,totalmente adaptada e coerente,nas chefias que fui encontrando ao longo da minha carreira profissional.O meu último Chefe,Dr.Lucas dos Santos,é o exemplo da chefia amiga,produtiva e respeitada,sem necessidade de ser publicitada,antes reconhecida universalmente.Os seus discípulos são testemunho directo da sua capacidade técnica,que lhe permitiu ser um dos pioneiros da neurocirurgia em Portugal,aguentando estóicamente um serviço de neurocirurgia em embrião,deficitário em pessoal médico e sobrelotado de pacientes.Constituiu uma équipe, a que tive a honra de pertencer,preparou e autonomizou neurocirurgiões e quando assumiu a Chefia,remodelou a estrutura e funcionamento do Serviço e ainda teve tempo,dedicação e coragem,para montar de raiz, um novo Serviço no Hospital de Santo António dos Capuchos!Os seus êxitos profissionais,foram complementados pela simpatia,simplicidade de processos,caracter beirão,personalidade vincada e uma tremenda apetência pelo bom humor,em perfeita simbiose! Pessoalmente,para além dos conhecimentos que me foi transmitindo ao longo de muitos anos,devo-lhe o exemplo de um homem são,íntegro,solidário militante nas horas mais dificeis da minha vida,e principalmente a oportunidade que me deu de ser seu amigo!O carisma de um Chefe,não se adquire,não se inventa e muito menos se negoceia!É nato e quase sempre hereditário!É o seu caso!Um abraço informático, grato e amigo.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Quando no porto de Nacala,terminou para mim e mais alguns sortudos,a viagem de turismo militarizado a bordo do paquete Niassa,alguns companheiros de desdita ficaram a bordo,para desembarcarem mais tarde em Cabo Delgado.Entre eles um amigo de infancia,recém-casado,que na viagem de circum-navegação,passou o tempo a escrever longas páginas á mulher.A escrita só era interrompida para me comunicar repetidamente, que tinha encontro marcado com a morte!É evidente que a par da sensação desagradável e esquisita que me assaltava,procurava transmitir-lhe o melhor que podia e as circunstancias permitiam,que não era assim,que tudo iria rolar sob esferas,que o tempo passava depressa e sei lá mais o quê!Antes de eu subir para o famigerado camião,abraçou-se a mim,chorando copiosamente, garantindo-me que não mais nos voltariamos a ver!Atirei-lhe com todos os palavrões que ainda tinha disponíveis,apesar do consumo durante a viagem,fiz cara de mau e ameacei dar-lhe dois pares de estalos,nem que tivesse de me pôr no bico dos pés.Ficou a imagem de um latagão desfeito em lágrimas,num adeus que nunca mais esqueci!Na longa viagem que me esperava,não consegui afastar essa cena que me comoveu e obrigou a um esforço suplementar,para evitar que a lama resultante do pó ,do suor e das lágrimas,me embotasse os poucos neurónios ainda funcionantes.Não foi preciso esperar muito tempo,para confirmar que o meu amigo tinha toda a razão.Fui avisado via rádio,que tinha sido emboscado e apesar de toda a coragem mais uma vez demonstrada,uma bala estúpida rompeu-lhe a femoral,tornando inuteis todos os esforços para controlar a hemorragia brutal,que haveria de empapar a terra e colorir a sua entrada no céu!Apesar do profundo desgosto,da emoção descontrolada e da tremenda revolta sentida,a verdade é que a guerra,a maldita guerra,não parou!Alguns meses depois,quando quase todos os condutores tinham sido atingidos pelas célebres minas,entrou-me pelo quarto dentro o meu condutor,afirmando que de madrugada estaria ao volante de um veículo,no meio da picada,em coluna de reconhecimento.Também ele tinha a certeza, que no minimo,seria gravemente ferido e como tal pedia-me por tudo que não abandonasse as duas filhas menores,que com a mulher desempregada,passavam dificuldades,enquanto aguardavam o seu regresso.Endureci como pude o olhar,empedreni a alma,engrossei a voz trémula e passei-lhe o responso habitual,em que já nem eu acreditava.Só descansou quando lhe dei a garantia solene e selada com um abraço comovido, que não deixaria de proteger as filhas,caso lhe viesse a acontecer algum precalço.A verdade é que toda a noite revi o filme já conhecido,apenas interrompido pela mensagem matinal,dando conta do rebentamento da mina que o destino reservara para o meu condutor,que estava gravemente ferido!De cabeça perdida,peguei no jeep e na minha G3,até então só usada na caça ás galinhas do mato e tentei ultrapassar a oposição de mentes mais lúcidas e a ordem do comandante que garantia que se necessário me pararia a tiro!Lembro-me que lhe disse e chamei tudo o que me veio á cabeça e devo-lhe o sangue- frio,a paciência e a amizade com que foi ouvindo, impassível,o que na realidade não merecia.Umas horas depois,encharcámos em cerveja o mal-entendido da manhã.Foi já amparados um ao outro,de voz empastada e olhos piscos,que recebemos a notícia de que afinal o Jorge estava estável,á espera de evacuação para Lisboa,onde seguramente mulher e filhas o ajudariam a recuperarDormi profundamente e até a osga fez horas extraordinárias para que os mosquitos não me mordessem!Ao acordar,percebi que tinha ganho mais um amigo.Pouco tempo depois fui louvado pelo Comando Militar da Região,por sugestão do homem que chegou a ameaçar dar-me um tiro!Quero crer que só a monumental ressaca do dia seguinte,justificou a sua iniciativa.Estes são dois exemplos dos muitos que poderia citar.Dois homens de juventude ao peito,mobilizados para uma guerra estúpida,na defesa de uma soberania que se confundia com o interesse do capital,resguardado na capital do Império!Os amigos e descendentes eram estratégicamente colocados em Timor, São Tomé ou em última análise,nas cosmopolitas Luanda,Beira ou Lourenço Marques,numa santa guerra,regada com champanhe e intensamente sentida no aroma dos charutos cubanos,fumados nas esplanadas á beira -mar plantadas!Os outros, eram suficientes para conter um inimigo mais ou menos imaginário,sem qualquer hipótese de se aproximar do território da sua guerra.Os outros,os que escaparam,são os mesmos que a sociedade actual,por total ignorância,vota ao desprezo.Incómodos para tudo e para todos,teimam de vez em quando em pôr a bóina dos Comandos ou outras,tentando disfarçar mazelas e mágoas,fazendo questão de lembrar que resistem e estão vivos e que mereciam o reconhecimento de uma Nação,que teima em os ignorar,sob a batuta do capital, agora descansado e resguardado,nada disposto a reconhecer a dívida monumental que têm em relação a eles.Alguns na miséria,outros irremediávelmente traumatizados de corpo e alma,a maior parte mobilizados para morrer o mais depressa possível e de preferência na clandestinidade,já que a missão só estará concluida quando o último herói desaparecer!Será que ninguém sente vergonha?Será que a ninguém pesa a consciência?Onde está a solidariedade apregoada aos sete ventos,por politicos profissionalizados ou pelos movimentos pela paz e concórdia que abundam no planeta?Pessoalmente não entendo porque se defendem sobreiros,protejem lobos e cordeiros,se publicitam acções politico-sociais e se esquecem esses homens corajosos, que um dia foram empurrados para uma guerra que não fomentaram e que agora vão morrendo á espera da justiça que nunca vai chegar.Quem me dera chegar ao poder!!!

terça-feira, 14 de setembro de 2010

TRANSMONTANOS

Para lá do Marão mandam os que lá estão!Provérbio antigo,mas definição perfeita das caracteristicas únicas das gentes de Trás-os Montes.Desde muito novo,que em Setembro e após um mês de praia,não havia alternativa á ida para Vilarinho Das Paranheiras,pequena aldeia transmontana,onde chegávamos muitas horas depois da partida e após heroica travessia de quilómetros de estradas de dois sentidos, que pareciam não ter fim.Saudávamos a chegada ao Alto do Espinho,no Marão,onde terminava a subida cheia de dificuldades para um automóvel aposentado,carregado de pessoas e malas,com paragem obrigatória em todas as fontes de água limpida e fresca da montanha, para saciar um radiador fumegante!Mais tarde,a minha costela transmontana assinalava imperterivelmente a chegada á curva da velha estrada,onde era possível ver a casa no meio da Quinta,chamada do Calvário,pela cruz que os meus Avós transportaram durante anos,para a tornarem numa realidade.Á chegada era uma sensação indescrítivel,uma alegria mal contida e uma excitação só acalmada noite dentro,quando sentados no terraço em noites de Lua Cheia recortada na montanha,ouviamos o silêncio, apenas violado pelo cântico dos grilos,das rãs e relas do rio Tâmega,ou pelo rouxinol que fazia questão de marcar presença.As estrelas brilhavam mais,as constelações deixavam-se identificar fácilmente,a estrada de Santiago apontava o caminho de Compostela.O sono repunha as energias consumidas,até que o canto de melros e pardais,nos despertava para o ar puro da montanha,ainda envolta no nevoeiro matinal.Ouvia-se então a chiadeira tipica dos carros de bois,com eixos e suspensão de madeira,arrastados por bois de capacete na cabeça,suportando a canga normalmente enfeitada com a giesta ou alecrim dos montes!A azáfama começava muito cedo,com a reunião de trabalhadores á porta da monumental adega,onde para além de serem distribuidas tarefas,o caseiro lhes« matava o bicho»,com copos de aguardente,que aqueciam a alma e davam calorias ao corpo precocemente desgastado pela vida dura e rude,consequente a um trabalho quase forçado,única alternativa de sobrevivencia naquele reino das fragas.O Alexandre,de centro de gravidade rebaixado,boina na cabeça,sorriso nos lábios,na frente dos bois,dava a ordem de partida:«Ei boi Ei!».O Maximino de olhar miasténico e fendas palpebrais assimétricas,por ptose mal esclarecida,marcava posição na caminhada até ás terras do rio,mostrando em permanência os dentes ralos e amarelos,num sorriso simplório e automatizado.A seguir o Adelino,0 António Baril e muitos outros,em grupo de piadas e provocações mútuas.As operações eram comandadas e coordenadas pelo caseiro,personagem respeitada por todos,na linha do velho Zorra,pioneiro dos feitores,de bigode farfalhudo e voz grossa,homem honrado,amigo do seu amigo e fiel ao seu patrão.Contam-se histórias sem fim do velho feitor,todas elas consolidando a imagem lendária,ainda hoje recordada e venerada.Era comentado o seu regresso de viagem ao Porto,no comboio que durante anos apitou no vale e incendiou os montes.Adormeceu ao som da melodia dos carris e quando acordou a estação de Vilarinho já ficara para trás!Nada de inultrapassável e como tal a rápida resolução de saltar em andamento.com armas e bagagens para a berma da linha!Só que o salto não correu tão bem como desejado.As costelas partidas e horas de gritos de socorro,estatelado na vinha,foram factura, elevada para gesto tão destemido.A lavagem dos toneis era feita com água quente e enxofre.Alguns, enormes, permitiam a entrada de um trabalhador,antes de se fechar a portinhola.Quando a situação se tornava insustentável ouviam-se os gritos surdos do infeliz encarcerado e a resposta filosófica do Zorra: «Continua,se ainda pias, é porque estás vivo!»Apesar de tudo, consta que estas cenas e outras do género terminaram sempre sem problemas.Na época das vindimas,vinham grupos de fora ajudar e alegrar o trabalho, com velhas cantigas que apesar de nem sempre afinadas, minimizavam o esforço e refrescavam os ares.Quando as dornas regressavam vazias ,tinha acabado a vindima,mas mantinha-se vivo o desejo de voltar no próximo ano.As desfolhadas eram feitas á noite,na eira iluminada por candieiros de petóleo,,numa semi-escuridão que fomentava o roubo de um beijo ás moçoilas de face corada e hormonas á flôr da pele,ou juras de amor eterno,embaladas pelo som de desgastadas concertinas, marcando o tom de vozes roucas e desafinadas.O milho-rei raras vezes aparecia,o que não impediu que alguns namôros tivessem nascido como por encanto,do meio das espigas.Era assim a vida na Quinta!Mais tarde quando o maldito DR me passou a perseguir por todo o lado,o Maximino,salutarmente simples e ingénuo,aproximava-se de mim ,tirava a boina e dizia:«O menino,senhor doutor Carlinhos, não se importa de me dar um cigarro?»Escusado será dizer que o cigarro se multiplicava na razão directa de uma amizade saudável e que o tempo viria a confirmar indestrutível.Passeios montado numa égua carregada de vicíos,que em direcção a Vidago não saía do passo lento,mas que invertido o rumo,partia á desfilada,em galope desenfreado que só parava no estábulo!É evidente que o animal tinha toda a razão,pois bem me lembro,salvaguardando as espécies,do esforço necessário para subir de bicicleta a estrada inclinada até Vilela do Tâmega,para depois a descer vertiginosamente,em disputa com o meu irmão João e com os primos Matateus nos quadros!Para além destas e outras recordações,fica a imagem daquela boa gente,pobre,humilde que nem a fome os impedia de oferecerem um pouco de chouriço ou um naco da brôa,que as mulheres lhes levavam religiosamente ao meio-dia, esperando o seu regresso á sombra do centenário sobreiro.Muitas vezes roídos de preocupações,mas com um caracter,um orgulho próprio e uma dignidade,notáveis!São estas as caracteristicas genéticas e imunes ás mutações ,que definem os transmontanos.Tenho que estar agradecido a todos eles,pela ajuda na moldagem do meu carácter e pela magnifica lição de vida , que agora recordo sentado na fraga,no alto da quinta,tentando recuperar o chiar dos carros de bois orientados pelo Alexandre e a expressão feliz do«Saguê»Maximino,fumando uma cigarrada!As estrelas continuam lá,mas a lua brilha menos e os grilos,rãs e relas estão mais envergonhados e menos exuberantes nas suas cantorias nocturnas,tambem eles desgastados pelo tempo e convencidos,que o passado nunca mais será presente!

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

VIAGEM PARA A GUERRA

A polémica instalou-se quando o António Lobo Antunes,entendeu falar sobre a Guerra Colonial com algum exagero,depois transformado em ficção, a bem da verdade,da Instituição Militar e até da Nação!Levantou-se um coro de indignação dos militares mais graduados,relíquias de uma guerra que pouco ou nada dignificou o nosso País,onde, quer se queira quer não,houve exageros,atropelos e abusos de parte a parte,que não vale a pena tentar escamotear,á custa de prometidas bofetadas e outras sevícias, apregoadas aos sete ventos!Tambem eu fui parar á guerra!Tambem eu a vivi as suas múltiplas facetas,naturalmente melhores umas que outras.Na véspera de Natal recebi uma mensagem,dando conta da minha mobilização,com viagem de barco e camarote já reservado para os primeiros dias de Janeiro.Deveria tomar as devidas providencias,para que na hora da partida tudo estivesse em ordem,bem ataviado,de despedidas feitas e com a garantia da promoção a Alferes-Milíciano Médico,no momento em que desse entrada no barco.Na data e hora marcada,meteram-me no paquete Niassa,com mais dez colegas e cerca de oitocentos militares de outros ramos,distribuidos pelos camarotes ou amontoados nos porões,ultrapassando a pequena contrariedade da lotação do velho barco ser apenas de quatrocentas pessoas!Libertadas as amarras e levantada âncora,0 cais foi ficando lentamente para trás,á custa de delicadas manobras,que passavam despercebidas,perante a profunda tristeza e incerteza que nos enchia a alma.Do cais escorriam lágrimas da família e amigos,que se diluiam nas águas do Tejo, agitadas pelo movimento da hélice.Á medida que o barco se afastava e se acertavam azimutes,ficavam mais longe os braços que nos acenavam,sem certeza de alguma vez podermos voltar a cair neles.A saudade apareceu rápidamente e a angústia instalou-se em força,condicionada pelo ambiente de profunda tristeza e incerteza ,que se vivia a bordo.Era o inicio da longa epopeia de vinte e nove dias de navegação atípica,com algumas paragens preocupantes no meio do oceano,fugindo sempre da costa africana,numa bolina que parecia não ter fim!Rezámos a todos os Deuses do mar,para que não houvesse tempestade que pudesse pôr em causa a estrutura fragilizada e sobrecarregada do barco,ou provocasse enjôos e os consequentes vómitos, num porão que tresandava ao cheiro misto de humanidade e munições.Passado o equador, entrámos no hemisfério sul,cada vez mais carregados de duvidas,cansados de mar,isolados de tudo e de todos e cheios de saudade,que nem os golfinhos que faziam questão de nos acompanhar ou os peixes voadores que batiam no casco,conseguiam atenuar.Dobrado o cabo das nossas tormentas,uma breve escala em Lourenço Marques para o discurso de boas vindas do Governador e de boa guerra,do Comandante Militar.Após mais dias de navegação desembarque em Nacala.Sem tempo para recuperar o equilibrio perdido na longa viagem,fomos de imediato enfiados e empacotados,com armas e bagagens,na caixa aberta de gigantesca BerlietEstavam á nossa espera, duzentos quilómetros, até Nampula,debaixo de um calor tórrido que aquecia a poeira e evaporava os gases do escape.Algumas horas depois,a heróica chegada á messe de Nampula,encharcados em suor,carregados de pó e de esqueleto todo partido!Uns dias de espera,valeram uma guia de marcha para Tete,na altura a zona mais problemática em termos de guerrilha.Chegado á capital da guerra e do calor,meteram-me num bimotor pilotado pelo heróico Craveiro,homem de sorriso triste e poucas falas,que mais tarde tarde se viria a revelar imprescinível,na missão que me aguardava.Algum tempo depois de levantar vôo,atrevi-me a perguntar onde estava Casula,sede do Batalhão para onde tinha sido destacado.O experiente Craveiro,apontava com o dedo num esforço inglório para me mostrar a vista aérea de meia dúzia de barracões de zinco,onde após aterrar numa magnifica pista de terra batida ,com cerca de duzentos metros,fui recebido e instalado principescamente num quarto, a meias com o Capelão,chão de cimento,telhado de zinco quente e porta de madeira com mosquiteiro de rede.Um luxo, só partilhado por um simpático rato e uma eficaz osga,companheiros fiéis das longas noites quentes.Logo na primeira noite fomos surpreendidos por algumas rajadas de metralhadora,que me pregaram literalmente ao chão,obrigaram o padre a apelar insistentemente á Virgem Maria,assustaram o rato que passou desvairado por nós e a osga de barriga atestada de mosquitos,que se deixou cair pesadamente no chão de cimento!Tinha começado ali a missão,que iria durar longos meses,carregada de episódios que tentarei ir descrevendo,onde a loucura,o humanismo,o medo e algum heroísmo,tinham denominador comum,garantia segura de amizade,justificação permanente para alguns desvios da normalidade,alívio precoce de consciências pesadas.Só então percebi que tinha chegado ao coração da guerra!

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

FEIRA DA LADRA

Aos primeiros raios de sol reflectidos nas águas calmas do Tejo,montam-se as tendas e estendais,mantendo viva uma feira a quem chamaram da Ladra.Ponto de encontro de feirantes e visitantes fiéis,passagem induzida e obrigatória de turistas curiosos.Os linhos,as roupas usadas e bafientas,misturam-se com louças de todas as idades,ferragens,óculos para ver ao perto e para corrigir cataratas,canetas e alfarrábios,violinos e cornetas e até supostas velharias e antiguidades!Na periferia, as tascas esgotam o stock dos pasteis de bacalhau,as febras grelhadas,os couratos fumegantes ou os pregos no pão,sempre acompanhados por um copo de vinho retirado directamente da pipa bem disfarçada no fundo da sala.Ás terças e sábados era quase obrigatória a visita!Ás terças por devoção e aos sábados por obrigação e tradição imposta pelo Chefe Lucas,no fim da visita médica aos doentes do Serviço.O Dr Lucas,com mais poder de compra que qualquer um de nós e sempre bem aconselhado,foi comprando alguns artigos de primeira qualidade.O saudoso Matos Ventura,preocupava-se quase exclusivamente com os alfarrábios relacionados com a segunda guerra mundial.O Maia Miguel,não abdicava da sua passada lenta e do seu ar descontraído,mostrando pouco interesse pelo material exposto,reservando a atenção para outro tipo de material que eventualmente pudesse aparecer.Eu,pouco abonado,armava em conselheiro e acabava por matar o vicío comprando algum prato partido,factor destabilizador e não poucas vezes gerador de total desacordo familiar.O Oliveira Antunes,atento a tudo o que desconfiasse ter valor,marcava desinteressadamente as peças que mais tarde iria buscar.Foi tambem aqui,que numa época em que os meus bolsos e os do amigo Casimiro Menezes, se encontravam mais vazios que o depósito de gasolina do N.S.U.,resolvemos arriscar a venda de um fato relativamente bem confeccionado e conservado,totalmente dispensável em função da dificuldade que se avolumava a cada minuto,de poder adquirir e ingerir qualquer tipo de alimento!Metemos a magnifica peça de vestuário num malão que transportámos na mala do carro, aliviado do peso do combustível,até ao gradeamento da feira,na proximidade do Hospital da Marinha.Acordámos que eu ficaria no carro mal estacionado, evitando qualquer multa inoportuna. O desejado negócio,essencial á nossa sobrevivencia,seria conduzido pelo Casimiro.Doeu-me a alma ver o meu amigo,magro,escoliótico e esfomeado,subir a interminável rampa, á procura de comprador!Doeu-me o corpo todo e em especial o estômago totalmente vazio,quando largos minutos depois, o vi regressar com ar furibundo,afirmando alto e bom som,não ter vendido o fato,já que o máximo que os desavergonhados oportunistas tinham oferecido,eram cem escudos,quando no minimo valia duzentos!Como era de esperar, nem mesmo a necessidade absoluta,foi suficiente para alterar uma questão de principio!Regressámos ainda mais preocupados e quase em hipoglicémia,mas orgulhosos da posição assumida,aproveitando as descidas, para em ponto morto, poupar a gasolina que nos havia de permitir chegar a casa da bela e suculenta D.Mira. Aí aconteceu o milagre habitual da Avó Maria!Á nossa espera,estava um vale de correio de quinhentos escudos,como sempre consequente ao sexto sentido daquela santa.Saudámos efusivamente a possibilidade de salvar o fato e a honra,mas principalmente o lauto jantar que se adivinhava na Mourama,restaurante galego,eleito em dias de festa e de alivio financeiro.Enquanto esperava e salivava pelo magnífico bife com presunto,ovo a cavalo e molho de natas permissivo ás sopas de pão,senti que a nossa amizade se consolidava á custa de episódios deste género e pela defesa dos princípios sagrados da ética comercial e moral,de que nunca abdicámos!Como de costume, apeteceu-me mandar uma curta mensagem para Aveiro:Deus lhe pague Avó!Avé Maria...

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

CORREIO, LADEIRAS, ARISTIDES E OUTROS

A vida nas aldeias,tem situações e personagens ímpares,que deixam marcas profundas e perduram ao longo do tempo,por vezes recriadas pela imaginação,mas quase sempre recordadas com saudade dolorosa,consequente á noção exacta que é impossivel voltar aos velhos tempos.Isto tudo porque me lembrei agora do desgraçado carteiro,correndo as aldeias de lés a lés,montado numa bicicleta presa por arames,mas preparada para o transporte de todo o tipo de notícias e encomendas,num grande e desgastado saco de couro.Alvo referenciado e preferido dos cães das redondezas,que provávelmente embirravam com a farda,não poucas vezes teve que dar ás de Vila Diogo,sob pena de levar nas pernas ou nas nádegas as marcas dos dentes do ágil e desvairado Rájá,fox-terrier comprado na capital do reino,transportado em cesto de vime no comboio até Aveiro e que se adaptou extraordináriamente bem á vida do campo.Marcou pontos durante muitos anos não só pela sua dedicação,mas tambem pela velocidade e agilidade com que fazia gincana entre os canteiros do jardim,ou perseguia tudo o que tivesse penas para desespero da Deolinda,defensora primária e intransigente, de «porcos com sua licença»,galinhas,patos,perús e periquitos!Era tambem ela uma criatura maravilhosa,limitada pela sua simplicidade e ingenuidade,integrada desde sempre na mobilia da casa,dedicada aos patrões e aos «meninos »até ás ultimas consequencias.Guardiã do templo quando a familia estava em S.Tomé,mantinha a apetência e o prazer de nos servir magnificos cozidos á portuguesa,ou ovos mexidos, muitas vezes comidos já a caminho do apiadeiro!Santa e saudosa criatura,de coração grande e alma pura,lágrima fácil e sorriso aberto de olhos fechados.Apenas o senão de embirrar com o Ladeiras,latagão da Carregosa,vendedor de sardinhas, fanecas e carapaus de olhos vidrados e revirados,perseguidos e desejados por atléticas varejeiras,tranportados em canastra fixada á bicicleta.Chapéu de abas na cabeça,molas de roupa nas calças para evitar o óleo da corrente,anunciava com o seu vozeirão e á cornetada,á senhora Deolinda,a presença do fresquissimo pescado,pronto a grelhar no fogareiro a carvão.Para além de outros factores mais ou menos íntimos,esta desfaçatez,desencadeava uma idiossincrasia mal disfarçada e nunca ultrapassada.Relação de amor-ódio mal entendida,que poderia muito bem ter sido aproveitada pelo senhor Magalhães de Fermentões,para escrever um romance,no intervalo e sequência das habituais crónicas na Imprensa Regional.Para além das notícias sociais,não poucas vezes divagava sobre as condições climatéricas ,concluindo e deduzindo se «o ano viria a ser bom para o caroço».Personagem respeitável e respeitada,de cultura acima da média regional,amigo da família e presença assidua na Missa dominical,quase sempre ao nosso lado e de uma pobre alma supostamente pecadora,que chorava desalmadamente cada vez que a campaínha tocava a Santos,o sapateiro-sacristão agredia o bronze dos sinos da igreja,ou o coro que integrava as vozes mais admiradas da região, acompanhadas pelo violino do Tio Zé,se esganiçava de olhos fechados, como os galos nos cânticos matinais!Finalmente uma justa referência ao Ti Aristides,moleiro de profissão,de estatura elevada e estatuto respeitado,passada larga e pesada,mãos e rosto enfarinhados e dono de experiente mula,que transportava no lombo,por caminhos mil vezes percorridos,pesados sacos de farinha de milho.Mula e moleiro,eram visitas assíduas da casa de Lanhezes e tambem responsáveis por cenas caricatas,repetidas sistemáticamente.Em dias de calor tórrido, chegava o velho Aristides ao portão,tirava a farinha para levar á senhora Deolinda e aí deixava solta, a cansada,carregada e encalorada mula.Mal o moleiro virava a esquina da casa,o majestoso exemplar avançava rápidamente para o relvado,onde se espojava com as quatro patas para o ar,espalhando farinha,limpando as narinas na relva e não se coibindo de esvaziar a bexiga antes de regressar ao portão!O desespero dos mais velhos ,contrastava com a satisfação da mula e a risota dos mais novos,que afirmavam perentóriamente que a mula do Ti Aristides «jogava á quarta»,expressão que ainda hoje integra o nosso vocabulário.Estas são algumas personagens que pelas suas caracteristicas marcaram uma época na pacata aldeia.Já todos partiram deste mundo,mas consta que o Ladeiras continua a vender peixe a todos os Santos,o Aristides vai acumulando sacos de farinha para o que der e vier e a Deolinda reza e chora todos os dias pelos seus meninos!Que a Paz do Senhor esteja com todos!