sexta-feira, 29 de outubro de 2010

JORNALISMO

Quando era miúdo,vivia em casa dos Avós,á beira da ria de Aveiro e da avenida principal.Usava calças á golfe e empastava o cabelo ralo em toneladas de brilhantina,comprada na drogaria,para manter o penteado impecável e luzídio!Tinha também a obsessão de vir a ser bombeiro!Cada vez que a sirene do quartel tocava,ia rápidamente para a janela,ver os voluntários a correr, para ocuparem lugar no carro encarnado,que pouco depois passava em alta velocidade, com os tanques a largar água por todo o lado,de sirene estridente e todas as campaínhas disponíveis a badalar.Era um autêntico fascínio!Talvez porque essas cenas por vezes coincidiam com a hora de jantar,o bacalhau na brasa,passou a chamar-se bacalhau á bombeiro!Desfiado depois de assado,com batata cozida ás rodelas,muita cebola,ovo fatiado e muito azeite virgem,ainda hoje quando o como,me faz lembrar a saudável rivalidade entre os bombeiros das duas corporações,na ânsia de chegar primeiro e assumir a chefia da operação.Apeteceu-me muitas vezes pôr o capacete dourado,vestir a farda azul de machado pendurado e arranjar um canto no carro vermelho,que me levaria ao incêndio ou acidente que despoletava todo aquele frenesim!Apesar do respeito e admiração que ainda hoje sinto por esses bravos soldados da paz,tantas vezes estúpidamente injustiçados,a verdade é que ao longo dos anos e com a opção pelo curso de Medicina,fui perdendo o entusiasmo inicial ,ao constatar que havia outro tipo de missões com marcada componente altruísta e de cariz social.Foi então que terminado o curso,pensei sériamente tentar ser jornalista,desejo que só não se concretizou por absoluta falta de tempo e em função da mobilização para a guerra,castradora de todos os sonhos da minha geração!Era uma profissão que desde sempre me mereceu respeito e admiração,embora hoje tenha de reconhecer que está profundamente adulterada.A falta de rigor é frequentemente gritante,a falta de conteúdo gratuito, a responsabilidade e idoneidade não poucas vezes aligeirada.Mais censurável,é a tendência quase generalizada para impôr opiniões pessoais a qualquer preço,nem que para tal seja necessário coartar a liberdade de raciocínio,saturar entrevistados, espectadores ou leitores,penalizar eventuais dissidentes de opinião,institucionalizar a agressividade e até a má educação,em abordagens totalmente despropositadas e quase sempre desenfreadas!Autênticas alcateias esfomeadas de sensacionalismo,caem sobre as «vítimas»,perseguem-nas sem dó nem piedade,insistem em perguntas idiotas e fora de contexto,cruzam microfones,empurram parceiros, interrompem discursos e tentam induzir respostas,tudo no melhor estilo dos pica-miolos!Penso que este estilo e estas atitudes,em nada dignificam profissionais que em função do seu prestígio,exposição e poder mediático,deveriam ser os primeiros a dar o exemplo de civismo e cidadania plena,remetendo para plano secundário,tudo o que apesar de eventualmente rentável em termos de audiencia,não tenha qualquer intuito didáctico ou cultural.Felizmente ,ainda vai havendo excepções á regra,com uma qualidade, isenção e respeito pelo próximo que nada fica a dever aos velhos,consagrados e respeitados jornalistas,que me habituei a ler desde muito novo, em casa do avô republicano.A sua atitude,dignidade e postura social exemplar,foram determinantes e garantiram-lhes um lugar na história deste País.
É evidente que a evolução tecnológica na área da informação é tremenda,fomenta a agressividade cega e alimenta a competição desenfreada.No entanto é aqui,que a contenção verbal,o bom senso e o respeito pela postura e ideologia de terceiros,se deve manifestar e ser intenção primária dos verdadeiros profissionais da informação!Caso contrário,cada vez mais os jornais vão ficar nas bancas,as revistas serão exclusivamente côr-de-rosa ou de rasteiro teor sexual e o futebol passará a ter sessões contínuas nas televisões!O reconhecido poder dos «média»,não se compadece nem irá sobreviver, a atitudes impertinentes e muito menos a tentações prepotentes!Seria um exemplo deplorável,que deturparia de forma sistemática e irrecuperável,a informação correcta a que todos devemos ter acesso e poria em sério risco a evolução cultural a que todos temos direito!Penso que ninguem estará interessado em chegar a esta situação...

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

CASULA

Casula,era um pequeno aldeamento,no meio da enorme província de Tete,onde estava sediado um Batalhão de Caçadores e iria acontecer a minha primeira missão sanitária da guerra colonial.
Ao sair do avião,que aterrou na pista térrea,constatei a existência de meia dúzia de barracões de zinco num terreiro onde ondulava imponente a bandeira nacional e dormiam descansados e bem tratados,meia dúzia de cães do mato,rafeiros,adoptados pelos soldados.A fúria de regressar no mesmo avião que me tinha levado,do colega que eu ia substituir,não permitiu qualquer tipo de transmissão de funções!
Mala pousada em luxuoso quarto,utilizado a meias com o Capelão,senti estar a ser observado por dezenas de olhos curiosos e esperançados no apoio médico e psicológico que lhes poderia vir a dar,bálsamo ideal para os sacrifícios e riscos diários que se pediam áqueles bravos soldados.Em vez de uma enfermaria,havia uma minúscula tenda de campanha e um atrelado sanitário que ninguem se atrevia a abrir,para evitar perdas sempre penalizantes, para os enfermeiros responsáveis.Desde logo ficou combinado e autorizado pelo comandante,que se iria construir uma enfermaria condigna e funcional.Mobilizadas todas as boas vontades e especialidades dísponiveis,foi possível pouco tempo depois inaugurar um pavilhão ,que nos encheu de orgulho,com sala de consulta,uma pequena farmácia e uma enfermaria com doze camas,prontas a receber qualquer situação mais delicada.Simultâneamente,abriu-se o atrelado sanitário,bem fornecido de material cirúrgico e fármacos de toda a espécie, que viriam a ter uma importância crucial ao longo dos tempos.Consolidada a estrutura de apoio médico na sede do Batalhão,passei a fazer itenerâncias, em pequenos e velhos monomotores(D.O.),capazes de aterrar ou levantar em menos de 100 metros de pista,abanando por todo o lado,sem qualqure tipo de insonorização e que até deitavam fumo do equipamento de rádio!Antes de levantar vôo,não poucas vezes o piloto saltava nas asas,alinhando e restituindo um minimo de simetria á máquina voadora!Rodas travadas,motor no máximo de rotações,barulho ensurdecedor,alma entregue ao Criador!Logo que o travão era aliviado,o impulso gerado atirava a D.O. para a estratosfera em menos de cinquenta metros e depois era sempre para a frente!
Era necessário tambem,prestar assistência á população civil,encurralada num aldeamento com cubatas de barro e telhados de colmo,sob vigilância militar,da Pide e do Administrador civil, nativo,tão esperto quanto corrupto e desonesto,que vivia numa mansão na colina e que todos os dias escolhia criteriosamente a virgem que o iria acompanhar nas noites longas do trópico,para desespero do santo e ingénuo Capelão!
Um pouco mais á frente,o denominado e pomposo Hospital Civil,antigo posto de combate á doença do sono e respectivas moscas,agora adaptado ás novas funções.O apoio de dois enfermeiros,um deles Almirante de seu nome!Deslocava-me diáriamente no jeep que me tinha sido atríbuido,afastando-me cerca de cinco quilómetros do quartel,conduzido pelo meu motorista e acompanhado pelo Cabo-enfermeiro,sem qualquer tipo de arma,apesar dos protestos permanentes dos entendidos.Curiosamente,nos primeiros tempos,era total a indiferença da população.Até os miúdos que pareciam feitos de chocolate,nalguns casos com recheio nasal,que habitualmente são extremamente expansivos,pareciam condicionados por instruções vindas de alguem mais desconfiado ou politizado.Após uma noite inteiramente passada na tentativa coroada de êxito,de controlar um bébé em mal epiléptico por paludismo cerebral,tudo mudou como por encanto!Os miúdos passaram a apanhar boleia no meu jeep,de olhos brilhantes,sorrisos abertos e laringes afinadas!Os mais velhos,saudavam-nos de mãos postas e vénias solenes,enquadrando o inesquecível«SALEMA!»A confiança e a amizade mútua cresciam a olhos vistos,a ponto do Almirante me pedir para ser padrinho de um neto, a quem queria á força pôr o nome de Almirante Carlos Sereno!Ao fim de longas negociações e algums «cucas»,ficou apenas Almirante Sereno...
Para além de médico, passei a ser conselheiro,confidente e até o ponto de referência para frequentes protestos e lamúrias colectivas.Foram apesar das circunstâncias,tempos felizes,de realização profissional e em que me senti pela primeira vez,socialmente útil!
No dia em que deixei Casula por ter sido transferido,pedi ao piloto que sobrevoasse uma última vez o aldeamento.Testemunhei o adeus sentido dos meus amigos,percebi que um pouco de mim ficava para sempre com eles,num marco de vida inesquecível e experiência profissional ímpar!Mais tarde, quando a guerra terminou,recebi uma carta do meu amigo e compadre Almirante,manifestando amizade e gratidão pelo que tinhamos conseguido fazer em benefício daquela gente.Por portas travessas vim a confirmar o que desde sempre desconfiara.O Almirante,era um dos quadros regionais mais importantes da Frelimo!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

EVENTOS E EMPLASTROS

Consultei o dicionário e concluí:EVENTO- acontecimento,sucesso,êxito.Respiradouro ou resfolegadouro,ou orifício por onde entra o ar,comum nos cetáceos.EMPLASTRO--Pessoa inoportuna,achacadiça ou parasita!Em termos farmacológicos,é um medicamento sólido que adere á pele pelo efeito do calor
Vem isto a propósito,daquela criatura nortenha,sempre presente em qualquer evento,estratégicamente colocada atrás do locutor,olhar fixo na câmara de filmar,resistência notável a quem o vai agredindo,sorriso primário ,agora melhorado pela correcção dentária que alguem pagou.Onde quer que se adivinhe uma câmara de televisão,ele aí está,mantendo um ritual e satisfazendo uma apetência incontrolável!Alguém lhe pôs a alcunha de emplastro,pensando seguramente no medicamento que adere e actua na pele á base de calor,como o célebre emplastro leão,neste caso talvez dragão,ou as velhas papas de linhaça!É o tipo de emplastro ingénuo, primário e inofensivo,totalmente diferente de um sem número de emplastros disfarçados,parasitas inoportunos e perigosos,colocados estratégicamente e com ar desinteressado,mas com um olho no burro e o outro na câmara de televisão.A sua imagem passará discreta mas eficazmente em todos os telejornais,dando-lhes gratuitamente a notoriedade desejada e essencial aos seus designios,num País em que o aparecer na televisão ,ainda é o factor ideal para a promoção da imagem social e a consequente requisição,para os mais variados eventos!Confesso que embirro solenemente com a palavra evento,mas não tenho outro remédio senão aguentar a moda,consequente a um sem número de encontros sociais,de lazer,de trabalho,de formação,de marketing ou de pura rotina.O sucesso do evento é como o resfolegar da baleia,visivel a milhas de distância,tão respeitável quanto gracioso,inesquecível para quem alguma vez teve a sorte de assistir.Os custos, por vezes exorbitantes,diluem-se nos lucros da empresa e justificam-se pela satisfação dos colaboradores,ao mudar o local de trabalho extraordinário não remunerado,pela promoção social que implicam e pelo acesso a locais e acontecimentos,que o seu parco ordenado,que se mantém fixo por causa da maldita crise,nunca lhes permitiria desfrutar.
Secundarizam-se calma e estratégicamente os eventos familiares,inoportunos,entediantes,desgastantes e nada aconselháveis a quem tem obrigação restrita e prioritária de contribuir e acompanhar o crescimento da empresa.É a isto que penso poder chamar a política do emplastro!A hipnose dos eventos,permite ultrapassar todo o tipo de injustiças e atropelos sociais,fomenta e alimenta o parasitismo e até o despotismo patronal!Mas atenção,em termos farmacológicos,repito uma vez mais, que o emplastro é o medicamento que adere á pele pelo efeito da libertação de calor e como tal não se deve excluir alguma queimadura mais profunda,dolorosa ou incapacitante!Aí não haverá evento que resista!
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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

LIVRO DE RECLAMAÇÔES

Um País governado em ditadura durante quase cinquenta anos,é natural que tenha uma enorme vontade de aproveitar até ás ultimas consequencias,a liberdade que lhe foi devolvida de mão beijada!No entanto é tambem grande a tentação de a transformar em libertinagem,num exercício pseudo-democrático muito pouco recomendável.
Vem isto a propósito do livro de reclamações,instituído há uns anos,presença obrigatória e devidamente publicitada em qualquer instituição que preste serviço público.Citando o pároco amigo do Chefe Lucas dos Santos,é mais «um frenómeno inospinado que acontece no princípio dos séculos para atentar as almas»!E atenta as almas,mesmo as mais cândidas,porque como seria de esperar,é mal utilizado,a maior parte das vezes sem qualquer razão,quase sempre transformado em escape de frustrações,bálsamo de psicoses e até em atestado de má educação!Protesta-se por tudo e por nada,mais por nada do que por tudo,alimenta-se o prazer mórbido de aborrecer o próximo,dá-se continuidade a uma política de denúncia desenfreada tendente a colmatar deficiências básicas de responsabilidade estatal,nunca assumidas e convenientemente tranferidas para terceiros,quase sempre sem culpa no cartório.
A febre de reclamar é de tal ordem, que põe em causa princípios básicos de tolerância,amizade,solidariedade e principalmente de crítica construtiva.O protesto generaliza-se e a reclamação é rápidamente promovida a instituição!Reclama-se por um atrazo mínimo ,sem se ter o cuidado prévio de perceber a causa,protesta-se porque o funcionário riu quando devia estar sério,critica-se indiscriminadamente por ciúme,por inveja,por raiva,porque sim e até por vício!Todos os protestos devem ser enviados a entidades específicas,que os julgarão e irão decidir das penas a aplicar aos prevaricadores.Justifica-se assim a própria existência e principalmente o custo acrescido para a despesa do estado e do imposto para o contribuinte!Uma autêntica «congeminência político-social»como diria calma e sábiamente o meu saudoso Pai.
É evidente que sou o primeiro a concordar com a critica e o protesto construtivo,bem fundamentados e tendentes a melhorar serviços e atitudes!Para tal é necessário e urgente,criar regras, que possam valorizar e disciplinar a liberdade de opinião e expressão,na génese de uma crítica correcta e construtiva.
Até lá,será frequente a falta de civismo que ainda vai caracterizando uma boa parte da nossa sociedade,que em nada contribui para uma postura responsável,moderna e verdadeiramente democrática!Já agora,aproveito para apresentar um veemente protesto ,em forma de reclamação:É incrivel que ainda não se tenha instituido um livro de contra- reclamações,onde possa ser denunciado e responsabilizado todo o protesto gratuito e sem qualquer ponta de razão!Valeu?

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

OUTONO

Da janela do meu quarto, onde escorrem gotas de chuva miudinha e teimosa,assisto á queda das folhas amareladas dos carvalhos rugosos e envelhecidos,empurradas para o vôo ondulado de despedida,pelo vento frio de leste que as arrancou dos galhos ressequidos.Ao longe,na montanha mais cinzenta,um timido raio de sol tenta romper o tecto de nuvens pesadas,procurando manter o arco-íris que domina o vale ainda sonolento.Os pássaros abrigados nos beirais,vão piando sem força para cantar,resmungando pela sorte que os espera,ansiando o regresso da primavera!Os arbustos, tambem eles desfolhados,enchem-se de gotas de água que escorrem para o solo,formando riachos de caudal cada vez maior,que arrastam a poeira de um verão já distante e as folhas mortas e apodrecidas.Chegou o Outono!Apesar do célebre buraco de ozono,o ciclo da natureza renova-se todos os anos,fiel ao principio das quatro estações e ás suas caracteristicas singulares.Esta é uma estação equilibrada,cheia de tons quentes e dias mornos,de folhas caducas e árvores que se despem despudoradamente.Prenúncio de um inverno que se aproxima,é tambem a época ideal para recuperar energias consumidas ao desbarato, em verões escaldantes,carregados de suores e abusos de toda a espécie!Paira no ar alguma tristeza,enche-se a alma de melancolia e o espírito inunda-se de poesia.Ouvem-se sonetos por todo o lado,pintam-se quadros de tons suaves,sente-se o cheiro de terra molhada,as noites são mais longas e escuras,os dias mais curtos e mesclados.Retiram-se as lãs da naftalina,assam-se castanhas em potes de barro,mata-se o porco já bem tratado,guarda-se a carne na salgadeira e fuma-se o chouriço a morcela e até a alheira!Depois tudo vai perdendo alguma graça á medida que se aproxima o Inverno sorrateiro,restando a esperança, que é certeza, que para o ano haverá novo Outono, por ordem expressa da natureza.Pois é, a vida tambem tem o seu ciclo de estações que se esgotam em rápida sequencia e que infelizmente não se renovam!A maior parte das vezes o Outono chega sem que tenhamos vivido em pleno a Primavera,sem que tenhamos investido sériamente no Verão.Só quando o frio enruga a pele e a chuva desgasta os ossos,começamos a ter a noção da proximidade do Inverno, não desejado,mas sem qualquer hipótese de rejeição!Estou nessa fase e confesso o meu desagrado e a minha surpresa.Cheguei quase sem dar por ela,mas agora que tenho a noção exacta do pouco tempo que resta,apetece-me viver intensamente,minuto a minuto,se possível dispensando o sono,para ter hipótese de voltar aos caminhos da minha aldeia, sentir o cheiro da lenha queimada na lareira,ver o fumo branco a sair das chaminés,sentir o ondular das searas,ouvir o murmúrio dos choupos e pinheiros e correr nos campos carregados de girassóis!Quero o velho cuco a cantar,as margaridas a crescer e as amendoeiras em flôr!Quero ouvir as badaladas do sino de bronze da minha igreja e o apito do combóio no apeadeiro!Já agora ,que a água do mar me venha molhar os pés,o marulhar das ondas me encha os ouvidos e que o luar de Agosto me ilumine o caminho que ainda me espera!É utopia?Será pedir muito?Eu depois prometo contar...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O DEBATE

Apesar de totalmente desiludido com as atitudes e postura dos políticos caseiros,resolvi tomar atenção ao anunciado debate televisivo,entre os representantes das duas maiores centrais sindicais,membros do governo,do capital e da economia.Tinha alguma esperança de poder vir a ser elucidado sobre a situação real do Paìs,numa discussão isenta de interesses pessoais,partidários ou politicos,que me pudesse motivar para os sacrifícios que me são pedidos,ou melhor ,que me querem impôr,numa partilha responsável com todos os parceiros de desgraça.Pura ilusão meus senhores!De um lado os responsáveis máximos do sindicalismo nacional,esgrimindo argumentos um tanto ou quanto enferrujados,jurando consonância de objectivos,anunciando a greve geral redentora!Ao seu lado,o patrão do patronato,bem enquadrado no cenário,ar preocupado,atento a qualquer pormenor que pudesse pôr em causa direitos adquiridos,ou seja, os lucros exorbitantes de um sem número de empresas!Na sua frente um jovem e inocente professor de economia,um ministro recidivante do actual governo e um anafado,bem remunerado,aposentado no activo,representante não se sabe muito bem de quê ou de quem!Na plateia ,alguns representantes das autarquias e um sem número de ilustres convidados da apresentadora,bem apresentada,sentada num banco,em postura mais ou menos sensual e equidistante dos intervenientes.Foi neste cenário que se afirmaram posições ,defenderam atitudes, venderam ilusões e apenas se disseram as convenientes meias verdades!Os brilhantes raciocínios,foram interrompidos por longos intervalos publicitários,ou pelas intervenções normalmente pouco oportunas,da moderadora,tambem ela ávida de protagonismo que ajude a subsidiar o programa e a justificar mais alguma comenda.A paciência foi-se esgotando ao longo do tempo,farto de lugares comuns,da defesa do indefensável e principalmente da desfaçatez dos crónicos e iluminados clientes assíduos do parasitismo social,pregadores repetitivos de políticas esgotadas.Confesso,humildemente, a minha total incapacidade para aguentar o suplício até ao fim!Antes de adormecer,interroguei-me sobre o que nos espera,entregues a meia dúzia de eleitos,a uma dúzia de comentadores e á elite de bancários e gestores.Talvez por isso, sonhei que cantava a balada da despedida e ao acordar percebi que o nosso fado é eterno!

terça-feira, 12 de outubro de 2010

PALACE DE VIDAGO

Anunciada há muito tempo como convinha,mas só agora concretizada,a inauguração do Palace Hotel de Vidago,fez-me lembrar as noivas em segundas núpcias,vestidas de branco,recauchutadas para o efeito e parceiras de cama de alguns convidados!Também aqui,há várias semanas, dezenas de ilustres artistas da nossa praça,eram convidados a testar as novas instalações e a admirar a decoração badalada aos sete ventos,da responsabilidade de iluminados gestores do gosto alheio.Passeavam pelos corredores pintados de fresco e constatavam a fisionomia alterada do velho parque,amputado de algumas árvores mais velhas,derrubadas por intempéries,ou pela mão humana pouco crítica.
O campo de golfe,agora com 18 buracos,fazia a delícia de banqueiros de barriga cheia de «spread»e sapatos protegidos pelas taxas de juro,gestores no activo e no passivo,milionários nacionais,espanhois e internacionais,antecipando o que se deseja venha a ser mais um «ponto de encontro global»do capitalismo,dos seus agentes e das gentes de bem viver,comer e conviver!O povo,o bom povo transmontano,foi autorizado,por especial favor,a visitar o jardim que já foi deles,numa demonstração inequívoca de cínico e hipócrita gesto democratizante.
Tinha chegado, finalmente, o dia da inauguração oficial ,cem anos depois de uma falhada inauguração real!O senhor primeiro-ministro,não deixou créditos por mãos alheias e sem qualquer intuito eleitoralista,descerrou mais uma lápide de granito do Bragado,com data e nome gravados,precedendo magnífico discurso de louvores ao capital,que apesar da crise,se mantem activo e aberto a tudo o que possa ser rentável e passível de subsídio.
Meia dúzia de paspalhos,fora dos portões do parque,aguardaram pacientemente,que a comitiva de uma dúzia de carros do povo ao serviço dos governantes,desfilasse rápidamente,sem direito a qualquer gesto ou aceno mais solidário, com as reais dificuldades da maioria das pessoas deste pobre País!
O automóvel do primeiro-ministro parou frente à escadaria,subida descontraidamente,pelo ilustre governante,exibindo um fato provávelmente confeccionado em Paris, olhar distante mas atento a qualquer eventual buraco mais perigoso,que se pudesse juntar ao buraco do orçamento,a que a oposição de direita e até de esquerda se refere diária e injustamente!Flashs,fotografias em todas as posições e captando todos os gestos,garantindo a importância e solenidade do acto,abrilhantado pelo aplauso unânime e vibrante do patronato, convocado e convidado para o efeito.Efeito garantido e aval concedido ao mais alto nível,para o consumo de largos milhões de euros,numa remodelação nada justificável,muito menos em plena e badalada crise,aqui totalmente secundarizada e desprezada,pela vaidade dos gestores e a necessidade de aplicar e disfarçar lucros monumentais,consequentes á ingestão da cerveja que o Zé vai bebendo,para afogar as mágoas!
O incómodo numero de desempregados,as dificuldades cada vez mais evidentes da classe média,os cortes salariais,o congelamento de pensões,o aumento dos combustíveis,a redução das deduções fiscais e das ajudas sociais,o aumento permanente dos impostos e a mais que provável recessão,deixam de ter qualquer significado!O importante e redentor, é que os hoteis de luxo se multipliquem,os campos de golfe se redimensionem e os «spas» não sejam esquecidos,complementando os justos prémios de produtividade,assiduidade,disponibilidade e saudável e democrática rotatividade!É altura ideal para esquecer quantos já não conseguem gritar um protesto,seguramente devolvido pela fachada do majestoso hotel,ou impedido de chegar ao destino pelos atentos,numerosos e talvez bem pagos,seguranças!É esta a triste realidade do meu Paìs!

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

SITUAÇÕES CRÌTICAS NA URGÊNCIA

Como é fácil de calcular,o Serviço de Urgência de um grande Hospital,tem necessáriamente alguns casos,que pela sua especificidade,raridade ou bizarria,ficam para sempre na memória dos intervenientes.A sua descrição resiste a gerações de médicos,alertando-os para situações em que a atitude cirúrgica correcta,o bom senso clínico e muitas vezes a capacidade de decisão ou improvisação,têm papel preponderante na sua resolução.
Recordo a entrada directa no S.O. de um alto quadro de uma conhecida Instituição,que resolveu utilizar um belo punhal de cabo de marfim,para testar a resistência da sua grelha costal e principalmente do seu músculo cardíaco!A entrada no bloco operatório foi imediata,de punhal pulsátil,tamponando uma ferida do ventrículo esquerdo,posteriormente suturada pelo competente e polivalente Cirurgião-Chefe Dr. Gomes Rosa,com a nossa humilde colaboração.Um post-operatório sem problemas,permitiu o regresso rápido ás suas funções,com a proibição absoluta de se aproximar de qualquer tipo de arma branca ou similar!
Também numa madrugada que nunca mais esqueci,o médico que estava de vela,veio ao quarto onde descansava um pouco,alertando-me para uma situação estranha,que ele não entendia bem,pedindo a minha observação,para poder acreditar no que pensava ter visto!O meu acordar tradicionalmente resmungão,terminou ao constatar a presença de uma doente relativamente nova,com ar assustado e delirante,a quem não foi difícil fazer o diagnóstico de ruptura uterina,permitindo a saída pela vagina de uma ansa intestinal já necrosada!Situação de brutalidade difícil de imaginar e aceitar,obrigou uma vez mais o Cirurgião a intervir de imediato.Na exploração da cavidade abdominal,constatou-se a existência de um feto morto,aparentando ter cerca de cinco meses,totalmente fora de um útero desfeito e navegando entre as ansas intestinais!Á delicada e complexa intervenção cirurgica,seguiu-se um post-operatório turbulento,com a mais que prevísivel septicémia,que com muito esforço,não menos antibióticos e alguma sorte, se conseguiu debelar.Durante todo o tempo de internamento,a doente negou terminantemente qualquer manobra abortiva,seguramente na génese daquele descalabro.Curiosamente,alguns anos depois,no consultório do Sindicato do Comércio e Indústria em Lourenço Marques onde eu fazia consulta para tentar complementar o miserável vencimento de Alferes-Médico,entrou silenciosa mais uma doente.Quando levantei os olhos da ficha de identificação,deparei com um rosto conhecido,que não conseguia referenciar a qualquer situação ou local.Foi então que de sorriso triste e alguma comoção na voz,se identificou como sendo a doente operada na Urgência de São José!Tinha percebido que eu trabalhava naquela Clínica e achou por bem ir ter comigo, para finalmente assumir as manobras abortivas que sempre negara!Estupefacto, não consegui reagir.Enquanto tentava alinhavar o discurso adequado, para apesar de tudo lhe agradecer a concordância tardia e até talvez a aliviar de algum sentimento de culpa,a senhora levantou-se,sorriu uma última vez e saiu porta fora,tão silenciosa quanto tinha entrado!Confesso que a consulta terminou ali e que durante algum tempo andei sem rumo
pelas ruas da cidade,digerindo o que acabara de me acontecer e pensando como é complexa e imprevísivel a reacção do ser humano!
Frequentes e de natural predomínio nocturno,tremendas bebedeiras,que terminavam nos balcões, após diálogos de surdos e muita coramina intravenosa.Os «desvios sexuais»obrigavam muitas vezes os envergonhados prevaricadores,a recorrer á urgência,para tentar resolver situações mais ou menos delicadas,quase sempre mobilizadoras da curiosidade geral e do riso difícil de conter.Eram relativamente frequentes,acidentes de percurso ,envolvendo os mais diversos objectos,como as cargas de esferográficas intra- vesicais,garrafas de sumo ou cerveja e até um frasco de Tofa,que deu um trabalhão para ser retirado de um rubicundo artista,que resolvera beber café, pelo sítio menos conveniente!Corria á boca cheia,a história de um cavalheiro que deu entrada no balcão de roupão de seda,perfeitamente atrapalhado e envergonhado.Quando lhe perguntaram o que o tinha levado ali,afastou com gesto afectado o roupão que o cobria,pondo a descoberto a ramagem de um magnífico nabo,que segundo afirmava,entrara acidentalmente, por onde devia sair depois de convenientemente digerido!Desta não fui testemunha,mas lá que se contava,contava!
Muito mais situações poderia descrever,umas hilariantes,outras profundamente tristes e desgastantes.Era assim aquele Serviço de Urgência,escola de virtudes,paredes meias com o desfile da desgraça e miséria humanas,que a sociedade procurava ignorar,mas que era uma realidade perfeitamente palpável,naquelas noites de vígilia!Mas mais grave e chocante do que tudo isso,era a chegada, em épocas festivas ou de férias,dos idosos de olhar triste e ternurento,abandonados por tudo e por todos,ávidos de um gesto mais carinhoso,em fim de percurso terreno!Guardo religiosamente alguns desabafos e até confidências,dessas pessoas, já sem força para reagir ou gritar aos sete ventos, a ingratidão familiar e social de que eram vítimas e com a percepção exacta de como se tornavam indesejáveis em qualquer lado!Para eles ,havia normalmente uma maca excedentária,um naco de pão, uma sopa morna e um pouco do carinho que ia sobrando,mas faltava-lhes a esperança de vida para alimentar a alma e impedir que a luz do corredor se apagasse precocemente!Esses, eu nunca vou esquecer!