segunda-feira, 30 de agosto de 2010

DOUTOURAMENTO

Numa época em que estão na moda .os cursos post-graduação,mestrados,doutouramentos e um sem número de ultraespecializações devidamente tituladas,confesso nunca ter sentido qualquer apetência para me meter nesses assados.Preferi preparar-me o melhor possível,na faculdade dos Hospitais Civis de Lisboa,verdadeira escola de ensino e aprendizagem, que os mais velhos e experientes faziam questão de transmitir diária e gratuitamente,sem parangonas,mesclada de principios de honestidade cientifica,camaradagem e amizade colectiva.A subida na escala hierárquica e científica,foi sendo promovida por numerosos e exigentes concursos,a que me apresentei ao longo da minha vida hospitalar, sem recurso a qualquer herança genética.Poupei simultâneamente aos meus colegas,amigos e conhecidos o desgaste fisico e psicológico,de escrever doutor em vez de dr, o que em altura de poupança é exemplar e gratificante!No entanto e curiosamente,vivi uma situação complicada,como membro de um autoproclamado júri,num doutoramento que se impunha como urgente,necessário e totalmente merecido,pelo esforço desenvolvido pelo candidato, para seguir á risca a orientação e principios préviamente definidos como indispensáveis,para concretizar as aspirações do indígena. A sua personalidade,a posição social actual e algum pudor da minha parte,impedem-me de citar nomes.Direi apenas que se tratava de um caloiro da faculdade de economia,a quem se adivinhavam qualidades que o poderiam catapultar para altos voos, como mais tarde se viria a confirmar.O dificil exame,a que se submeteu,perante o júri presidido pelo Casimiro Meneses e de que eu era um inocente vogal,revelou.-se vital para o futuro economista.As perguntas malévolamente seleccionadas para a noite das provas,foram sendo razoávelmente respondidas e regadas com copos de brandy,sábiamente retirados de uma garrafa que o presidente do júri tinha desencantado sabe-se lá onde!Como era de esperar,não tardou que júri e candidato tivessem de abandonar precocemente o quarto do caloiro, onde decorriam as provas.Mais dificil foi atravessar o já de si estreito corredor,com a espantada dona Mira, em camisa de noite, fazendo questão de nos dificultar o acesso ao velho Karmen-Guia,onde cresciam milhos e cogumelos nos tapetes de cairo.Após entrada tumultuosa e nada equilibrada,rumámos á Avenida Gago Coutinho,tão rápidamente quanto a delicada situação o permitia.As janelas todas abertas,os gritos capazes de acordar um elefante e umas lambadas bem dadas na cara do novo doutor,não foram suficientes para evitar o descalabro de um sono profundo, de ronco cavernoso e libertador de grandes quantidades de vapores de alcool,tambem eles perigo eminente para o faíscar do velho motor do prestável bólide!Tal situação,obrigou a uma rápida mudança de rumo em direcção a Santa Maria,onde o júri arrastou como lhe foi possível,o candidato promovido, até á secção das coraminas e B6 intravenosas,desencadeantes de sonoros e retemperadores espirros,que devem ter assustado o presidente, acabando tambem ele por adormecer numa maca!Só uma dose em tudo igual á do candidato,lhe permitiu recuperar forças e equilibrio,para nos acompanhar o mais discretamente possivel ao saudoso automóvel, que nunca falhava nas horas mais complicadas!A promoção consumou-se de modo original e ali mesmo jurei não me meter mais em doutouramentos.No entanto, tenho que confessar publicamente um pecado,de que presidente e candidato sempre desconfiaram,mas que o vogal nunca assumiu!A verdade é que a minha «heróica resistencia»,ficou a dever-se ao facto de ter bebido apenas metade das doses impostas...Deus sabe que o fiz na salvaguarda de situações criticas, como a que viria a acontecer!Apesar de tudo,sinto necessidade de o confessar,retirando um pequeno pecado ao rol dos muitos que me obrigarão a severas penitencias.Um abraço saudoso, ao Presidente do júri e ao brilhante economista em que se transformou o ingénuo candidato!

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A MENINA CUSTÒDIA E O ZÈ DO BACALHAU!

O meu irmão António,dos poucos leitores assiduos e critico atento das minhas pobres crónicas,lembrou-me meio zangado,meio desiludido,que me tinha esquecido de uma criatura marcante da nossa infancia,nem mais nem menos,a menina Custódia!Posteriormente lembrei-me de outro artista,tambem ele altamente responsável pela nossa boa constituição:o Zé do Bacalhau!A menina Custódia,natural da Trofa,era uma personagem de caracteristicas unicas.Dedicada de corpo e alma ao próximo,de disponibilidade quase tão grande como o pêlo do bigode e barba que fazia questão de ostentar,virgem potencial e de ovários fracalhotes,passeava nas aldeias,abancando nas casas ricas,que lhe davam comida e guarida a troco dos serviços prestados,todos eles na área da doença ou das desgraças vulgares!Os azares alheios eram atração fatal.Onde quer que houvesse gripes,constipações,pneumonias,sarampos,varicela ou desarranjos intestinais,era certo e sabido que a menina Custódia aparecia com rapidez estonteante,oferecendo os seus préstimos na área da saúde e da santidade!Sempre que necessário,espetava fueiros nas nossas nádegas púdicamente desnudadas e esfregadas com alcool puro, preparando-as para as dolorosas,perigosas e intermináveis injeções de penicilina.Pericia nunca posta em causa,na preparação das papas de linhaça que nos grelhavam a pele e vigilante atenta, tricotava as meias de lã que não nos deixavam arrefecer os pés.Fácies de sofrimento permanente,dificil de encarar e que associado aos «ais» e profundos suspiros,funcionava como contra-fogo da desgraça alheia!Os resultados prácticos eram quase sempre espectaculares,nomeadamente quando aos conhecimentos e dedicação da menina Custódia se associavam colheradas de óleo de fígado de bacalhau,deglutido de olhos fechados e narinas apertadas,para evitar eventuais refluxos.É aqui que entra o Zé do Bacalhau,amigo de longa data do Pai Sereno,personagem com algum mistério e de aventuras nos lugres que navegavam nos mares da Terra Nova,onde devia ser o encarregado de espremer os fígados dos pobres bacalhaus, até ás ultimas consequencias!O resultado, eram litros de óleo posteriormente transportado em malditos garrafões,oferecidos á familia com ritual apropriado,agradecimentos eternos e sorrisos cúmplices,para nossa desgraça e descanso da Mãe Julia que nos queria saudáveis,corados e encharcados em vitaminaD para evitar raquitismos,nem que para isso tivessemos de vomitar as entranhas!Sem duvida duas figuras inesquecíveis,na altura pouco valorizadas porque conotadas com situações menos agradáveis,mas hoje recordadas com saudade respeito e gratidão.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

PAREDÃO

Praia da Barra,vivendo na sombra da Costa Nova,refúgio preferido desde que me conheço.Farol dos mais altos,vestido de listas,mar calmo em baía artificial,transição ideal para as águas cinzentas da ria de Aveiro,espelho ímpar de gaivotas piantes,assustando taínhas que saltam e reflectem o sol nas escamas prateadas.O leve e doce marulhar,é sinfonia que refresca a alma,obriga a sonhar,viaja no vento e resiste á nortada.O nevoeiro matinal,esconde horizontes,limita navegantes e adensa o mistério do reino dos mares.Depois,como por encanto,levanta-se o véu,agitam-se as águas,espraiam-se as ondas,rolam pedras,conchas e búzios e chegam mensagens na espuma do mar!È um ritual que se repete há muitos anos e que não dispensa o passeio no paredão,de manhã ,ao por do sol e em especial em noites de luar.Extensa lingueta de cimento,orienta as marés,apontando ás águas da ria o caminho inexorável do mar.Esconde sonhos e desilusões,risos jovens e lágrimas antigas,projectos de vida,juras de amor e principalmente o som da velha ronca em noites de nevoeiro,adormecendo-nos melhor que qualquer dos sedativos que inundam o mercado!É nele que se ouvem os motores de frágeis traineiras rumando aos pesqueiros,é ele que parece parir os raios de luz do velho farol,que iluminam o horizonte de pequenos pontos cintilantes,é nele que as estrelas são mais brilhantes e se tornam cadentes por opção.Uma meia-laranja cheia de histórias,ponto de viragem obrigatório,retorno á realidade,que por momentos foi sonho.Marco de vida,palco da ilusão,mar de esperança na imortalidade que nos é negada e que ele tem supostamente garantida!Este é o nosso,o meu paredão!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

PREGO NO CÉREBRO

Uma vez mais de serviço á urgencia do Hospital de S.José,recebi a meio da tarde um telefonema pedindo a minha comparencia no S.O.e alertantando-me desde logo,para o facto de se tratar de um doente com um prego espetado na cabeça!Pelo caminho fui imaginando situações passiveis de provocar este tipo de acidente e na realidade a minha imaginação fértil por natureza, não conseguiu chegar a qualquer conclusão válida.O doente deitado numa maca, estava muito calmo,lucido e colaborou na minha tentativa frustrada de localizar o anunciado prego.Pensei tratar-se de alguma partida que alma caridosa e generosa,entendesse por bem pregar!No entanto depois de ver a radiografia,percebi que o prego era uma cavilha totalmente enfiada no cérebro do paciente,com a cabeça,que depois consegui palpar,rente ao couro cabeludo.Quando calmamente perguntei o que tinha acontecido,respondeu-me uma lágrima grossa que escorreu pela pele tisnada de uma face envelhecida.Perante o seu mutismo, entendi ser altura de resolver a situação o melhor e mais rápidamente possível e baseado na experiencia adquirida ao tirar o punhal da cabeça do Alcides, não tive grande dificuldade em retirar a cavilha,que razava o seio longitudinal superior,numa prova cabal de que a sorte proteje os audazes!Ao segundo dia de um post-operatório sem problemas e quando o senhor António já conseguia esboçar um sorriso,sentei-me a seu lado e pedi que me contasse a história do cérebro encavilhado,que até então ninguem tinha entendido.Meio envergonhado, meio arrependido,explicou ser Pai de filha única,linda como ninguem e casadoira com rapaz abastado da aldeia.Não querendo fazer fraca figura,até porque não é todos os dias que se casa uma filha,resolveu plantar atempadamente alguns terrenos com batata,pensando pagar as dividas entretanto contraidas,com o resultado de uma boa produção.Só que os deuses ou as bruxas invejosas, quem sabe,não estiveram pelos ajustes e uma tempestade nada previsivel naquela época do ano,deu-lhe cabo de todos os tubérculos,deixando-o sem um cêntimo para pagar a boda,o vestido da noiva e a prometida viagem de comboio até ao Luso,terra experiente,consagrada e muito requisitada para as noites de núpcias!A sua honra e a sua boa imagem, que tanto tinham custado a adquirir e manter,estavam postas em causa,os ventos da desgraça martelavam-lhe os neurónios e o tempo era escasso para qualquer solução alternativa!Foi então lentamente para o seu quarto,de martelo e cavilha na mão,pensando que se Cristo cruxificado tinha ressuscitado,tambem ele poderia obter a redenção se encavilhasse a cabeça!Se bem o pensou, melhor o fez e martelada após martelada,conseguiu enterrar totalmente a cavilha,esperando que o gesto de carpintaria,o libertasse da vergonha que antecipava nos olhares e sorrisos dos vizinhos.Só que o gesto acabaria por falhar tanto como a plantação de batata. A sua recuperação fisíca e mental foi muito rápida, para situação tão delicada.Mais tarde vim a saber que o dinheiro apareceu,a boda foi badalada durante meses pelas redondezas,as divídas foram pagas,a honra foi salva e por sorte o tempo voltou a colaborar na produção da batata!Quanto à cavilha,está ferrugenta,há anos enfiada num frasco de vidro transparente,religiosamente guardada na minha estante de recordações,para que mesmo em tempo de crise,ninguém a possa utilizar em qualquer acto de menos nobre carpintaria!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

SÃO TOMÉ

Escolhi o nome desta ilha paradisiaca para o meu blog e propositadamente nada escrevi,pois cada vez que tentei,entendi não conseguir transmitir toda a emoção que sinto sempre que me refiro ao local onde toda a minha familia viveu e foi feliz!Perdida no Atlantico,paredes meias com o equador,faz questão de nos receber engalanada pela abundante vegetação verde,banhada pelo mar de águas quentes e azuladas que refrescam permanentemente as raízes dos coqueiros,perfumada pelo cheiro do cacau que viaja na brisa suave e humida.A saudação de um nativo mais curioso,a simpatia de um povo alegre,mistura original de raças africanas,consequente ao grande numero de deportados e emigrantes forçados que ao longo do tempo se foram cruzando,diluindo culturas distintas e criando a sua maneira de estar e de ser absolutamente«sui-generis».Tremenda sensação de bem-estar ,apesar do calor humido que faz questão de nos acompanhar,tambem ele integrando a identidade da ilha.Depois,são as noites quentes de céu estrelado,é o luar reflectido nas águas calmas das baías,é o som de tambores longinquos que festejam a vida e dão vida ao ritmo quente dos nativos.É o amanhecer um pouco mais fresco,parindo a brisa que enfuna as velas de pequenas canôas, navegando em precário equilibrio por entre as barbatanas de sonolentos tubarões.Aqui e ali,o barulho de um coco que cai,o chilrear da passarada,um ou outro grito de macaco saltitante e o passeio descontraido de porcos e galinhas,fazendo questão de lembrar aos mais distraidos ou egoístas que as estradas tambem são deles!As praias,as lindas praias de São Tomé,permitem o banho de mar refrescante,que nos tempera a imaginação,aviva a memória e convida a uma nostálgica meditação.Com alguma sorte talvez se consiga ouvir o grito das sereias em noites de lua cheia,assustando espadartes,corvinas e barracudas,impondo-se como musas tentadoras e inspiradoras de poetas adormecidos á beira-mar,desaparecendo por encanto aos primeiros raios de um sol madrugador!As nativas, de filhos nas costas,mais morenas que mulatas,fazem questão de bambolear as ancas e sorrir mostrando os dentes muito brancos,movendo-se «mole-mole»para não desperdiçar energias, necessárias para a apanha do cacau ou na lavagem da roupa nas ribeiras.Na sanzala, o chôro dos bébés de chocolate funde-se no fumo das fogueiras,no cheiro do peixe seco e acaba por se perder no ladrar dos cães do mato.As palmeiras de leque,vaidosas quanto baste,estão por todo o lado,as flores exóticas fazem questão de se mostrar, as rosas de porcelana são irresistíveis!Sentem gratidão e respeito pelo «sonbonzo», médico no paraiso terrestre,seguramente com lugar cativo no paraíso celeste!Respira-se a sua bondade,o seu humanismo,a sua sabedoria e a sua experiencia.Seguem-lhe os conselhos,bebem-lhe o sorriso e tentam imitar a sua marcha calma,mas tremendamente firme.A Mãe,romântica inveterada,realiza-se a toda a hora,numa vivencia feliz,em convivio permanente com todo o mundo,desdobrando-se na missão de educar os filhos,amparar o marido e na adaptação á cultura daquele povo!Os irmãos são felizes,quase nativos,aprendem dialectos,fomentam amizades e criam diáriamente as raízes que os irão amarrar para sempre aquela terra!Eu,quase um intruso sonhador,bebo sofregamente tudo o que me é permitido no pouco tempo que lá estou e sinto-me tremendamente recompensado pela felicidade e realização dos outros.Já dá para entender porque tenho saudades de São Tomé?Já dá para entender que quero lá voltar antes de morrer,nem que para tal o Sócrates tenha de construir uma auto-estrada transcontinental?