terça-feira, 28 de setembro de 2010

A MINHA ÉQUIPE

Investir numa especialidade cirúrgica é tudo menos fácil!Concluida a ultima,de um interminável numero de provas públicas,somos declarados especialistas,ou seja,passamos a ser totalmente responsáveis e autónomos pela nossa actividade cirúrgica.Foi o que aconteceu comigo,abrindo-me perspectivas de actividade privada, em complemento com o trabalho hospitalar.Foi então necessário adquirir uma caixa de ferros cirúrgicos e simultâneamente conseguir a colaboração dos elementos capazes de constituir uma équipe.Se em termos futebolisticos fui pouco feliz na opção clubistica,neste caso,contra todas as expectativas ,tive sorte!Consegui uma boa caixa de ferros,num fabricante amador,o que naturalmente permitiu uma poupança significativa,sem prejuízo de qualidade.Mas melhor que isso,foi o facto das pessoas contactadas para a constituição do grupo,que eu considerava as melhores nas suas funções,me terem dado o sim!A primeira e extremamente grata surpresa,foi a anuência da Dra Cristina da Câmara,anestesista consagrada,Directora do Serviço de Anestesia do Hospital de São José,pioneira de várias técnicas anestésicas e de cuidados intensivos,de personalidade vincada, mas de trato extremamente educado, temperado por um lindo e terno sorriso enxertado no gesto elegante e ar distinto,num toque de classe raramente conseguido!Chefe carismática do seu grupo de anestesistas e intensivistas,de prestígio e capacidade profissional reconhecidos e admirados,aceitou com toda a simplicidade ser a minha anestesista!Não é difícil calcular o orgulho que senti por poder contar com a sua colaboração e a certeza antecipada de que não poderia ter tido opção mais feliz!Se necessário fosse ,os já muito longos anos de trabalho em équipe,são testemunho inequívoco da sua qualidade e disciplina profissionais,que justificam a admiração dos doentes e me transmitiram desde sempre uma sensação de segurança e bem-estar, libertando-me totalmente para as tarefas cirúrgicas,sem ter de me preocupar minimamente com as informações monitorizadas.A minha eterna gratidão,a minha sincera admiração e a amizada gerada na lição de vida que me deu ao aceitar o meu convite,fortalecida pela nobreza do seu carácter e eternizada pela qualidade e lealdade do seu trabalho!Depois, era fundamental encontrar um ajudante de mão cheia,leal,honesto,sintonizado com o espírito que se pretendia para a équipe e com uma capacidade de encaixe, suficiente para aturar as minhas birras de debutante.Também aqui a sorte não me abandonou!Encontrei no Prof,Freire de Andrade,mais do que o ajudante ideal,um amigo honesto e leal,que ao longo destes anos me tem acompanhado nas horas boas e menos boas,determinado em contribuir com as suas qualidades humanas e de trabalho,para o objectivo comum,de bem servir os nossos doentes.Os seus vastos conhecimentos teóricos,a sua experiência cirúrgica,a sua opinião sensata e a permanente disponibilidade,são factores determinante nos bons resultados obtidos e no saudável ambiente em que temos vivido!Tudo isto contribui de forma salutar para uma amizade que muito me honra.Finalmente impunha-se completar o grupo,com uma boa instrumentista,naturalmente familarizada com as técnicas e instrumentos neurocirúrgicos.Desde os primeiros passos no Serviço de Neurocirurgia,que me habituara a admirar ,o extraordinário trabalho,a disciplina profissional e o carisma da Enf.Chefe do Bloco!Tudo girava sobre rodas.As ordens,dadas num tom de voz firme,mas deixando transparecer carinho e admiração pelas suas subordinadas,não deixavam qualquer hipótese de contestação.A sua postura profissional e as suas qualidades humanas,fizeram dela uma figura respeitada e elemento essencial no bom desempenho do Serviço.Daí a minha grande admiração pela Alzira,elemento ideal para completar o grupo,embora no fundo eu soubesse que não podia alimentar grandes esperanças de poder contar com ela.Tentando ser convincente,mas na realidade perfeitamente atrapalhado e mais do que preparado para um doloroso não,calcule-se o meu espanto quando após breve período de reflexão,me transmitiu o sim!Claro que fiquei feliz da vida e de ego vaidoso, na razão directa do ciúme que se adivinhava noutros colegas!Foi assim que nasceu a nossa équipe.A qualidade notável de todos eles,é factor decisivo no equilíbrio emocional e bom ambiente,capazes de facilitar a rentabilidade e bons resultados obtidos ao longo destes anos.Todos eles me obrigam a tentar melhorar permanentemente,alguma qualidade que possa ter em termos cirúrgicos e humanos!Quando um dia as cegonhas que me puseram neste mundo,esticarem o pescoço e baterem as asas para me devolverem ás origens,darei ordem para voarem em círculos,anunciando a partida e disfarçando alguma lágrima saudosa, emocionada e grata,por vos poder ter tido como amigos e colaboradores!

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

SERVIÇO DE URGÊNCIA

Proliferam as séries televisivas sobre os serviços de urgência,com casos clinicos programados de acordo com a sensibilidade e emotividade das plateias,exageradamente romanceados e «sexualizados»,transmitindo uma imagem deturpada do que é na realidade um Serviço de Urgência!Eu, como tantos outros,trabalhei durante muitos anos na Urgência do Hospital de São José,para onde era destacado uma vez por semana,cumprindo vinte e quatro horas de serviço,tão desgastante quanto rentável em termos de satisfação pessoal e aprendizagem permanente e real,à custa de uma saudável tradição que os mais velhos respeitavam, ao transmitir os seus conhecimentos. Independentemente das amizades geradas pela solidariedade e espírito de grupo existente e patente em situações mais delicadas,a Urgência,ou melhor,o Banco de São José,era uma verdadeira escola de ciencia e de virtudes,comandada pelo Cirurgião-chefe,personagem quase mítica,que para chegar áquela posição,tinha tido de passar pelo crivo de exigentíssimos concursos,demonstrando os conhecimentos técnicos, capacidade de chefia e bom-senso clínico,garantia de potencial na resolução dos problemas inerentes a um serviço de urgência.As suas ordens eram integralmente respeitadas e a sua omnipresença era reconfortante e sinónimo de ajuda nunca negada.A visita aos doentes internados,era feita várias vezes ao dia e sempre que um caso mais raro ou de mais díficil diagnóstico era detectado,mobilizavam-se os internos mais novos para a história clínica de caras,discutida na enfermaria e dissecada no recato do quarto do cirurgião,onde normalmente o infeliz historiador, levava autênticos arraiais de «porrada científica»!Foi à custa de uma cena desse género,em que eu fui o bombo da festa,que estou em condições de quase garantir que nunca mais deixarei de equacionar o diagnóstico de trombose da mesentérica!O trabalho era árduo e estendia-se dos balcões de atendimento,à sala de observação,às salas de operações,passando pela pequena cirurgia,onde todos aprendiam os nós cirúrgicos e as suturas bem coaptadas.O afluxo de doentes, por vezes asfixiante,ia diminuindo á medida que a noite avançava,permitindo que à uma da manhã o vela entrasse de serviço,com a missão quase impossível de aguentar todas as secções,até às oito horas,enquanto a outra malta se dirigia para a velha sala de jantar.A par dos magníficos bifes,preparados carinhosamente e apimentados pelas tradicionais piadas das velhas empregadas,tinha lugar uma troca de impressões colectiva e a discussão dos casos clínicos mais relevantes.Nós, os mais novos, quase extasiados com tanta ciência posta na mesa,bebíamos sôfregamente os ensinamentos que nos iriam ser úteis para toda a vida!A«aula» terminava normalmente com um período reservado á cultura geral,ás novidades sociais, políticas e profissionais e também aos mexericos e anedotas,responsáveis por sonoras gargalhadas,que se prolongavam até aos quartos,onde merecidamente e sempre que possível,retemperávamos energias.Esta saudável e rotinada tradição,viria a ter fim,quando em pleno Abril democrático,os maqueiros e empregados auxiliares,num acto de pura libertinagem,invadiram e tomaram posse da velha sala.Assumo sem qualquer problema,o tremendo desgosto que senti e a revolta que quase ia pondo em causa os princípios democráticos em que sempre acreditei.É que ao contrário da euforia daquelas revolucionárias criaturas,iludidas pelo famoso «poder popular»,eu tinha a certeza que acabara naquele momento, sem honra ou benefício para ninguém,a tradição,a mística e a função didáctica,salvaguardadas ao longo dos anos e de várias gerações!Assim aconteceu!A sala passou a bar,o velho relógio desapareceu e as estruturas foram progressivamente alteradas.Até a chefia do respeitado Cirurgião,se diluiu por vários chefes das especialidades,alijando-se responsabilidades,onde cada um tentava puxar as brasas ás suas sardinhas e as sardinhas eram muito mais que as brasas!Enquanto chefiei uma èquipe de Neurocirurgia,na Urgência,fomentei reuniões para discussão de casos clínicos e apresentação de temas de interesse colectivo,escolhidos préviamente.Embora tenha sido reconhecida utilidade a essa iniciativa,a verdade é que lhes faltou sempre o ambiente da velha sala de jantar,o peso da tradição quase centenária,o carisma do Cirurgião-Chefe e o sabor dos bifes da Carminda!

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

HUMOR DO CHEFE

Na sequência do que escrevi sobre o humor do Dr. Lucas dos Santos,lembrei-me de vários episódios que aconteceram ao longo dos anos.Recordo com saudade,uma célebre e acidentada viagem rumo ao Monte da Soalheira,em pleno Alentejo,que tinha sido adquirido há pouco tempo e como tal impunha-se o transporte do mobiliário seleccionado e comprado para o efeito.Nada melhor que o magnifico Saab,para o levar!Ainda hoje estou para saber como me consegui sentar entre cadeiras e secretárias, todo encarquilhado e mal conseguindo respirar!Só o facto de me ir revesando com o Maia Miguel no lugar da frente,permitiu ultrapassar tal prova de resistência!Estava escrito no entanto, que nem tudo iria correr pelo melhor.Foi mandado parar por um polícia de viação,por ter atropelado um traço contínuo e só o facto de ser médico da corporação, o safou da multa e da eventual apreensão de carta!Um pouco mais á frente,a embraiagem recusou colaboração,limitando a caixa de velocidades á segunda e á quarta,sem qualquer hipótese de por exemplo,se meter a marcha- atrás!O diagnóstico foi feito de imediato:era o óleo da caixa que aquecia e nada como prosseguir viagem em ritmo mais lento,permitindo arrefecer progressivamente o lubrificante e como tal retomar as funções da caixa, na plenitude.Não é dificil calcular a epopeia para chegar ao Monte,onde após visita pormenorizada,descarregámos a mobília.Depois de colocar com algum esforço um tanque de cimento,num ponto mais alto,tivemos de empurrar o desgraçado Saab,possibilitando as manobras necessárias ao regresso a Lisboa,arrancando em segunda e mantendo o ritmo em quarta!Viémos a saber depois que o óleo estava inocente,por reduzido quase a zero.Seguramente que os responsáveis da Saab não deixaram de aproveitar o incidente para comprovar a eficiência do seu material!Eficiente,foi também a manobra adoptada para pôr fim a desgastante consulta,que se prolongava pela noite dentro e em que o risco de ver inimigos em vez de doentes, era uma realidade.Pediu para ser conduzido em cadeira de rodas até á porta de saída,assumindo um fácies doentio e pedindo a remarcação dos doentes que faltava observar!Recuperou rápidamente e um bom jantar acabou de vez com o incidente,que ficou célebre e registado nos anais do HCVP.Foi o desgaste provocado pelo elevadíssimo número de doentes que observava e a intensidade das cirurgias que efectuava,que o levou a passar pelas brasas,numa reunião post-prandial na Gulbenkian,perante o desespêro da Dra Cristina da Câmara que o acompanhava e se esforçava disfarçadamente para o acordar,ou pelo menos para evitar que um ressonar pouco oportuno,acabasse com o discurso monótono e prolixo do Administrador e a consequente inviabilização da oferta de material para o Serviço.No fim,como é costume, tudo acabou bem e o equipamento foi concedido a tempo e horas.Onde não houve concessões,foi na entrevista concedida á Capital,com honras de fotografia na primeira página,onde o comentário que lhe pediram sobre a técnica de recuperação de lesões medulares,que um chinês se propunha ensaiar no HCVP,foi tão sintético quanto incisivo:É UMA VIGARICE! E era,de tal maneira que nunca mais ninguem ouviu falar do chinês e muito menos da sua técnica!Japonês era o meu humilde Datsun100A,requisitado e transformado em Fórmula 1,pelas ruas da capital.De buzina em altos berros e piscas intermitentes,ignorando vermelhos e cruzamentos,transportou o Chefe,com a máxima urgência ,aos cuidados intensivos da Clinica da Cruz Vermelha,para lhe ser administrado na veia, potente analgésico,pondo fim a dilacerante dôr de dentes!A preocupação que a crise e o aparato provocou em todo o mundo,terminaria num sorriso aliviado e descontraído do paciente e no reconhecimento absoluto das minhas qualidades de condutor de veículos ligeiros,transformados em velozes ambulâncias!Rapidez era o que se pedia,para ultrapassar um atraso na chegada ao bloco operatório,ainda mais,condicionado pela fila na entrada para o elevador da Clínica.Ouviu-se então um «cuidado que há bomba!»que afastou as pessoas á procura do local do rebentamento,permitindo a nossa entrada no elevador e a chegada a horas ao bloco operatório,onde vivemos muitas horas felizes e algumas preocupantes.Destas, não resisto a contar uma cena, que para além dos suores frios,poderia ter trazido outro tipo de complicações.Numa bela tarde de um fim de semana,foi necessário operar um jovem paciente ,com um enorme hematoma temporal,que tudo levava a crer ser espontâneo,ou consequente á hemorragia de pequeno vaso não visualizável.O médico assistente do doente, pediu autorização para assistir á intervenção,que de imediato lhe foi concedida.A craniotomia e abertura da dura-máter,decorreu sem qualquer incidente,com a rapidez e elegância a que o Chefe nos habituara.O problema começou,quando puncionado e aspirado o negro hematoma,ficámos mais ou menos estarrecidos,com um magnífico exemplar de aneurisma da cerebral média ,pronto a sangrar desalmadamente,a qualquer momento!Impunha-se a clipagem rápida,mas infelizmente os clipes existentes em stock não eram os mais adequados!Foi então dada ordem á instrumentista, para rápidamente se deslocar em ambulância,ao Serviço de Neurocirurgia do Hospital de São José,tentando o empréstimo do clip ideal para aquela situação.Só que ninguém se lembrou que era fim de semana e a chefe do bloco não estava,o que obrigou a nova viagem até Moscavide,para a ir buscar.Como é fácil de calcular,a situação prolongou-se durante cerca de duas horas.A par dos suores frios que teimavam em me inundar a testa, sempre que olhava para a simpática bolinha,o cirurgião inventou toda a espécie de manobras de diversão e sublimação de maus agoiros,que distrairam o espirito do médico assistente, evitando possível pânico, nada aconselhável naquela dificil conjuntura!Não há memória de hemostase tão exaustiva,nem suspensão de dura tão perfeita e muito menos de aspirador que tanto funcionasse, sem nada aspirar!O nosso colega nunca se apercebeu da delicada situação,o clip acabou por chegar,o aneurisma foi brilhante e definitivamente excluído de circulação e o paciente fez uma rápida recuperação.Quanto a nós ficámos com a garantia de ter mais uma história real, para contar aos nossos netos.Foi de CHEFE!

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

CHEFIAS

Todo o mundo sonha ser chefe,mesmo sem ter a mínima noção do que implica uma chefia.Era bem melhor que a maior parte das pessoas se contentassem em ser chefes de si mesmo, minimizando os problemas das verdadeiras chefias.Infelizmente não é assim,já que raros se contentam com a sua autonomia e independencia naturais.Invejam tudo e todos que lhes possam fazer sombra,imaginam-se chefes trezentos e sessenta e cinco dias por ano,sem sequer terem a preocupação de equacionar aptidões,responsabilidade e o desgaste inerente a esses cargos!Alimentam falsas amizades,assumem muitas vezes a sabujice,optam por todo o tipo de critica destrutiva e se necessário fôr traem despudoradamente o melhor amigo.Triste realidade assumida por uma sociedade em que a competitividade desenfreada,é estimulada desde a fecundação,fomentada na Escola Primária,cimentada na Secundária e refinada na Faculdade!As pessoas transbordam de«conhecimento dirigido»,em detrimento da cultura geral e da adopçaõ de princípios que deveriam ser intocáveis.Daqui resultam personalidades deformadas,dirigidas obsessivamente para um objectivo pré-definido,em permanente conflito com tudo o que os possa desviar minimamente dessa intenção prioritária.A necessidade de afirmação social,é incontrolável,a maior parte das vezes sustentada pela manipulação grosseira de iniciativas e resultados,assumida e utilizada até á exaustão.A vaidade isola-os em redomas de cristal,imunes á desgraça alheia,salvaguardados de eventual culpa que nunca assumem.O prestigiado e profissionalizado chefe,saltita de empresa para empresa,ao abrigo do reconhecimento partidário e da hierarquia no poder!São as chefias exaltadas e louvadas por todo o mundo e também pelos média do regime,colocados estratégicamente em postos chave.Felizmente que no meu caso,tive a sorte de ser chefiado por outro tipo de pessoas.A sua personalidade,a sua estatura moral,a inteligência posta ao serviço do conhecimento e os resultados, não poucas vezes camuflados por uma humildade quase envergonhada,são prova cabal da competencia e rentabilidade dos verdadeiros chefes.As coordenadas que me foram incutidas pelas chefias familiares,tiveram uma sequência feliz,totalmente adaptada e coerente,nas chefias que fui encontrando ao longo da minha carreira profissional.O meu último Chefe,Dr.Lucas dos Santos,é o exemplo da chefia amiga,produtiva e respeitada,sem necessidade de ser publicitada,antes reconhecida universalmente.Os seus discípulos são testemunho directo da sua capacidade técnica,que lhe permitiu ser um dos pioneiros da neurocirurgia em Portugal,aguentando estóicamente um serviço de neurocirurgia em embrião,deficitário em pessoal médico e sobrelotado de pacientes.Constituiu uma équipe, a que tive a honra de pertencer,preparou e autonomizou neurocirurgiões e quando assumiu a Chefia,remodelou a estrutura e funcionamento do Serviço e ainda teve tempo,dedicação e coragem,para montar de raiz, um novo Serviço no Hospital de Santo António dos Capuchos!Os seus êxitos profissionais,foram complementados pela simpatia,simplicidade de processos,caracter beirão,personalidade vincada e uma tremenda apetência pelo bom humor,em perfeita simbiose! Pessoalmente,para além dos conhecimentos que me foi transmitindo ao longo de muitos anos,devo-lhe o exemplo de um homem são,íntegro,solidário militante nas horas mais dificeis da minha vida,e principalmente a oportunidade que me deu de ser seu amigo!O carisma de um Chefe,não se adquire,não se inventa e muito menos se negoceia!É nato e quase sempre hereditário!É o seu caso!Um abraço informático, grato e amigo.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Quando no porto de Nacala,terminou para mim e mais alguns sortudos,a viagem de turismo militarizado a bordo do paquete Niassa,alguns companheiros de desdita ficaram a bordo,para desembarcarem mais tarde em Cabo Delgado.Entre eles um amigo de infancia,recém-casado,que na viagem de circum-navegação,passou o tempo a escrever longas páginas á mulher.A escrita só era interrompida para me comunicar repetidamente, que tinha encontro marcado com a morte!É evidente que a par da sensação desagradável e esquisita que me assaltava,procurava transmitir-lhe o melhor que podia e as circunstancias permitiam,que não era assim,que tudo iria rolar sob esferas,que o tempo passava depressa e sei lá mais o quê!Antes de eu subir para o famigerado camião,abraçou-se a mim,chorando copiosamente, garantindo-me que não mais nos voltariamos a ver!Atirei-lhe com todos os palavrões que ainda tinha disponíveis,apesar do consumo durante a viagem,fiz cara de mau e ameacei dar-lhe dois pares de estalos,nem que tivesse de me pôr no bico dos pés.Ficou a imagem de um latagão desfeito em lágrimas,num adeus que nunca mais esqueci!Na longa viagem que me esperava,não consegui afastar essa cena que me comoveu e obrigou a um esforço suplementar,para evitar que a lama resultante do pó ,do suor e das lágrimas,me embotasse os poucos neurónios ainda funcionantes.Não foi preciso esperar muito tempo,para confirmar que o meu amigo tinha toda a razão.Fui avisado via rádio,que tinha sido emboscado e apesar de toda a coragem mais uma vez demonstrada,uma bala estúpida rompeu-lhe a femoral,tornando inuteis todos os esforços para controlar a hemorragia brutal,que haveria de empapar a terra e colorir a sua entrada no céu!Apesar do profundo desgosto,da emoção descontrolada e da tremenda revolta sentida,a verdade é que a guerra,a maldita guerra,não parou!Alguns meses depois,quando quase todos os condutores tinham sido atingidos pelas célebres minas,entrou-me pelo quarto dentro o meu condutor,afirmando que de madrugada estaria ao volante de um veículo,no meio da picada,em coluna de reconhecimento.Também ele tinha a certeza, que no minimo,seria gravemente ferido e como tal pedia-me por tudo que não abandonasse as duas filhas menores,que com a mulher desempregada,passavam dificuldades,enquanto aguardavam o seu regresso.Endureci como pude o olhar,empedreni a alma,engrossei a voz trémula e passei-lhe o responso habitual,em que já nem eu acreditava.Só descansou quando lhe dei a garantia solene e selada com um abraço comovido, que não deixaria de proteger as filhas,caso lhe viesse a acontecer algum precalço.A verdade é que toda a noite revi o filme já conhecido,apenas interrompido pela mensagem matinal,dando conta do rebentamento da mina que o destino reservara para o meu condutor,que estava gravemente ferido!De cabeça perdida,peguei no jeep e na minha G3,até então só usada na caça ás galinhas do mato e tentei ultrapassar a oposição de mentes mais lúcidas e a ordem do comandante que garantia que se necessário me pararia a tiro!Lembro-me que lhe disse e chamei tudo o que me veio á cabeça e devo-lhe o sangue- frio,a paciência e a amizade com que foi ouvindo, impassível,o que na realidade não merecia.Umas horas depois,encharcámos em cerveja o mal-entendido da manhã.Foi já amparados um ao outro,de voz empastada e olhos piscos,que recebemos a notícia de que afinal o Jorge estava estável,á espera de evacuação para Lisboa,onde seguramente mulher e filhas o ajudariam a recuperarDormi profundamente e até a osga fez horas extraordinárias para que os mosquitos não me mordessem!Ao acordar,percebi que tinha ganho mais um amigo.Pouco tempo depois fui louvado pelo Comando Militar da Região,por sugestão do homem que chegou a ameaçar dar-me um tiro!Quero crer que só a monumental ressaca do dia seguinte,justificou a sua iniciativa.Estes são dois exemplos dos muitos que poderia citar.Dois homens de juventude ao peito,mobilizados para uma guerra estúpida,na defesa de uma soberania que se confundia com o interesse do capital,resguardado na capital do Império!Os amigos e descendentes eram estratégicamente colocados em Timor, São Tomé ou em última análise,nas cosmopolitas Luanda,Beira ou Lourenço Marques,numa santa guerra,regada com champanhe e intensamente sentida no aroma dos charutos cubanos,fumados nas esplanadas á beira -mar plantadas!Os outros, eram suficientes para conter um inimigo mais ou menos imaginário,sem qualquer hipótese de se aproximar do território da sua guerra.Os outros,os que escaparam,são os mesmos que a sociedade actual,por total ignorância,vota ao desprezo.Incómodos para tudo e para todos,teimam de vez em quando em pôr a bóina dos Comandos ou outras,tentando disfarçar mazelas e mágoas,fazendo questão de lembrar que resistem e estão vivos e que mereciam o reconhecimento de uma Nação,que teima em os ignorar,sob a batuta do capital, agora descansado e resguardado,nada disposto a reconhecer a dívida monumental que têm em relação a eles.Alguns na miséria,outros irremediávelmente traumatizados de corpo e alma,a maior parte mobilizados para morrer o mais depressa possível e de preferência na clandestinidade,já que a missão só estará concluida quando o último herói desaparecer!Será que ninguém sente vergonha?Será que a ninguém pesa a consciência?Onde está a solidariedade apregoada aos sete ventos,por politicos profissionalizados ou pelos movimentos pela paz e concórdia que abundam no planeta?Pessoalmente não entendo porque se defendem sobreiros,protejem lobos e cordeiros,se publicitam acções politico-sociais e se esquecem esses homens corajosos, que um dia foram empurrados para uma guerra que não fomentaram e que agora vão morrendo á espera da justiça que nunca vai chegar.Quem me dera chegar ao poder!!!

terça-feira, 14 de setembro de 2010

TRANSMONTANOS

Para lá do Marão mandam os que lá estão!Provérbio antigo,mas definição perfeita das caracteristicas únicas das gentes de Trás-os Montes.Desde muito novo,que em Setembro e após um mês de praia,não havia alternativa á ida para Vilarinho Das Paranheiras,pequena aldeia transmontana,onde chegávamos muitas horas depois da partida e após heroica travessia de quilómetros de estradas de dois sentidos, que pareciam não ter fim.Saudávamos a chegada ao Alto do Espinho,no Marão,onde terminava a subida cheia de dificuldades para um automóvel aposentado,carregado de pessoas e malas,com paragem obrigatória em todas as fontes de água limpida e fresca da montanha, para saciar um radiador fumegante!Mais tarde,a minha costela transmontana assinalava imperterivelmente a chegada á curva da velha estrada,onde era possível ver a casa no meio da Quinta,chamada do Calvário,pela cruz que os meus Avós transportaram durante anos,para a tornarem numa realidade.Á chegada era uma sensação indescrítivel,uma alegria mal contida e uma excitação só acalmada noite dentro,quando sentados no terraço em noites de Lua Cheia recortada na montanha,ouviamos o silêncio, apenas violado pelo cântico dos grilos,das rãs e relas do rio Tâmega,ou pelo rouxinol que fazia questão de marcar presença.As estrelas brilhavam mais,as constelações deixavam-se identificar fácilmente,a estrada de Santiago apontava o caminho de Compostela.O sono repunha as energias consumidas,até que o canto de melros e pardais,nos despertava para o ar puro da montanha,ainda envolta no nevoeiro matinal.Ouvia-se então a chiadeira tipica dos carros de bois,com eixos e suspensão de madeira,arrastados por bois de capacete na cabeça,suportando a canga normalmente enfeitada com a giesta ou alecrim dos montes!A azáfama começava muito cedo,com a reunião de trabalhadores á porta da monumental adega,onde para além de serem distribuidas tarefas,o caseiro lhes« matava o bicho»,com copos de aguardente,que aqueciam a alma e davam calorias ao corpo precocemente desgastado pela vida dura e rude,consequente a um trabalho quase forçado,única alternativa de sobrevivencia naquele reino das fragas.O Alexandre,de centro de gravidade rebaixado,boina na cabeça,sorriso nos lábios,na frente dos bois,dava a ordem de partida:«Ei boi Ei!».O Maximino de olhar miasténico e fendas palpebrais assimétricas,por ptose mal esclarecida,marcava posição na caminhada até ás terras do rio,mostrando em permanência os dentes ralos e amarelos,num sorriso simplório e automatizado.A seguir o Adelino,0 António Baril e muitos outros,em grupo de piadas e provocações mútuas.As operações eram comandadas e coordenadas pelo caseiro,personagem respeitada por todos,na linha do velho Zorra,pioneiro dos feitores,de bigode farfalhudo e voz grossa,homem honrado,amigo do seu amigo e fiel ao seu patrão.Contam-se histórias sem fim do velho feitor,todas elas consolidando a imagem lendária,ainda hoje recordada e venerada.Era comentado o seu regresso de viagem ao Porto,no comboio que durante anos apitou no vale e incendiou os montes.Adormeceu ao som da melodia dos carris e quando acordou a estação de Vilarinho já ficara para trás!Nada de inultrapassável e como tal a rápida resolução de saltar em andamento.com armas e bagagens para a berma da linha!Só que o salto não correu tão bem como desejado.As costelas partidas e horas de gritos de socorro,estatelado na vinha,foram factura, elevada para gesto tão destemido.A lavagem dos toneis era feita com água quente e enxofre.Alguns, enormes, permitiam a entrada de um trabalhador,antes de se fechar a portinhola.Quando a situação se tornava insustentável ouviam-se os gritos surdos do infeliz encarcerado e a resposta filosófica do Zorra: «Continua,se ainda pias, é porque estás vivo!»Apesar de tudo, consta que estas cenas e outras do género terminaram sempre sem problemas.Na época das vindimas,vinham grupos de fora ajudar e alegrar o trabalho, com velhas cantigas que apesar de nem sempre afinadas, minimizavam o esforço e refrescavam os ares.Quando as dornas regressavam vazias ,tinha acabado a vindima,mas mantinha-se vivo o desejo de voltar no próximo ano.As desfolhadas eram feitas á noite,na eira iluminada por candieiros de petóleo,,numa semi-escuridão que fomentava o roubo de um beijo ás moçoilas de face corada e hormonas á flôr da pele,ou juras de amor eterno,embaladas pelo som de desgastadas concertinas, marcando o tom de vozes roucas e desafinadas.O milho-rei raras vezes aparecia,o que não impediu que alguns namôros tivessem nascido como por encanto,do meio das espigas.Era assim a vida na Quinta!Mais tarde quando o maldito DR me passou a perseguir por todo o lado,o Maximino,salutarmente simples e ingénuo,aproximava-se de mim ,tirava a boina e dizia:«O menino,senhor doutor Carlinhos, não se importa de me dar um cigarro?»Escusado será dizer que o cigarro se multiplicava na razão directa de uma amizade saudável e que o tempo viria a confirmar indestrutível.Passeios montado numa égua carregada de vicíos,que em direcção a Vidago não saía do passo lento,mas que invertido o rumo,partia á desfilada,em galope desenfreado que só parava no estábulo!É evidente que o animal tinha toda a razão,pois bem me lembro,salvaguardando as espécies,do esforço necessário para subir de bicicleta a estrada inclinada até Vilela do Tâmega,para depois a descer vertiginosamente,em disputa com o meu irmão João e com os primos Matateus nos quadros!Para além destas e outras recordações,fica a imagem daquela boa gente,pobre,humilde que nem a fome os impedia de oferecerem um pouco de chouriço ou um naco da brôa,que as mulheres lhes levavam religiosamente ao meio-dia, esperando o seu regresso á sombra do centenário sobreiro.Muitas vezes roídos de preocupações,mas com um caracter,um orgulho próprio e uma dignidade,notáveis!São estas as caracteristicas genéticas e imunes ás mutações ,que definem os transmontanos.Tenho que estar agradecido a todos eles,pela ajuda na moldagem do meu carácter e pela magnifica lição de vida , que agora recordo sentado na fraga,no alto da quinta,tentando recuperar o chiar dos carros de bois orientados pelo Alexandre e a expressão feliz do«Saguê»Maximino,fumando uma cigarrada!As estrelas continuam lá,mas a lua brilha menos e os grilos,rãs e relas estão mais envergonhados e menos exuberantes nas suas cantorias nocturnas,tambem eles desgastados pelo tempo e convencidos,que o passado nunca mais será presente!

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

VIAGEM PARA A GUERRA

A polémica instalou-se quando o António Lobo Antunes,entendeu falar sobre a Guerra Colonial com algum exagero,depois transformado em ficção, a bem da verdade,da Instituição Militar e até da Nação!Levantou-se um coro de indignação dos militares mais graduados,relíquias de uma guerra que pouco ou nada dignificou o nosso País,onde, quer se queira quer não,houve exageros,atropelos e abusos de parte a parte,que não vale a pena tentar escamotear,á custa de prometidas bofetadas e outras sevícias, apregoadas aos sete ventos!Tambem eu fui parar á guerra!Tambem eu a vivi as suas múltiplas facetas,naturalmente melhores umas que outras.Na véspera de Natal recebi uma mensagem,dando conta da minha mobilização,com viagem de barco e camarote já reservado para os primeiros dias de Janeiro.Deveria tomar as devidas providencias,para que na hora da partida tudo estivesse em ordem,bem ataviado,de despedidas feitas e com a garantia da promoção a Alferes-Milíciano Médico,no momento em que desse entrada no barco.Na data e hora marcada,meteram-me no paquete Niassa,com mais dez colegas e cerca de oitocentos militares de outros ramos,distribuidos pelos camarotes ou amontoados nos porões,ultrapassando a pequena contrariedade da lotação do velho barco ser apenas de quatrocentas pessoas!Libertadas as amarras e levantada âncora,0 cais foi ficando lentamente para trás,á custa de delicadas manobras,que passavam despercebidas,perante a profunda tristeza e incerteza que nos enchia a alma.Do cais escorriam lágrimas da família e amigos,que se diluiam nas águas do Tejo, agitadas pelo movimento da hélice.Á medida que o barco se afastava e se acertavam azimutes,ficavam mais longe os braços que nos acenavam,sem certeza de alguma vez podermos voltar a cair neles.A saudade apareceu rápidamente e a angústia instalou-se em força,condicionada pelo ambiente de profunda tristeza e incerteza ,que se vivia a bordo.Era o inicio da longa epopeia de vinte e nove dias de navegação atípica,com algumas paragens preocupantes no meio do oceano,fugindo sempre da costa africana,numa bolina que parecia não ter fim!Rezámos a todos os Deuses do mar,para que não houvesse tempestade que pudesse pôr em causa a estrutura fragilizada e sobrecarregada do barco,ou provocasse enjôos e os consequentes vómitos, num porão que tresandava ao cheiro misto de humanidade e munições.Passado o equador, entrámos no hemisfério sul,cada vez mais carregados de duvidas,cansados de mar,isolados de tudo e de todos e cheios de saudade,que nem os golfinhos que faziam questão de nos acompanhar ou os peixes voadores que batiam no casco,conseguiam atenuar.Dobrado o cabo das nossas tormentas,uma breve escala em Lourenço Marques para o discurso de boas vindas do Governador e de boa guerra,do Comandante Militar.Após mais dias de navegação desembarque em Nacala.Sem tempo para recuperar o equilibrio perdido na longa viagem,fomos de imediato enfiados e empacotados,com armas e bagagens,na caixa aberta de gigantesca BerlietEstavam á nossa espera, duzentos quilómetros, até Nampula,debaixo de um calor tórrido que aquecia a poeira e evaporava os gases do escape.Algumas horas depois,a heróica chegada á messe de Nampula,encharcados em suor,carregados de pó e de esqueleto todo partido!Uns dias de espera,valeram uma guia de marcha para Tete,na altura a zona mais problemática em termos de guerrilha.Chegado á capital da guerra e do calor,meteram-me num bimotor pilotado pelo heróico Craveiro,homem de sorriso triste e poucas falas,que mais tarde tarde se viria a revelar imprescinível,na missão que me aguardava.Algum tempo depois de levantar vôo,atrevi-me a perguntar onde estava Casula,sede do Batalhão para onde tinha sido destacado.O experiente Craveiro,apontava com o dedo num esforço inglório para me mostrar a vista aérea de meia dúzia de barracões de zinco,onde após aterrar numa magnifica pista de terra batida ,com cerca de duzentos metros,fui recebido e instalado principescamente num quarto, a meias com o Capelão,chão de cimento,telhado de zinco quente e porta de madeira com mosquiteiro de rede.Um luxo, só partilhado por um simpático rato e uma eficaz osga,companheiros fiéis das longas noites quentes.Logo na primeira noite fomos surpreendidos por algumas rajadas de metralhadora,que me pregaram literalmente ao chão,obrigaram o padre a apelar insistentemente á Virgem Maria,assustaram o rato que passou desvairado por nós e a osga de barriga atestada de mosquitos,que se deixou cair pesadamente no chão de cimento!Tinha começado ali a missão,que iria durar longos meses,carregada de episódios que tentarei ir descrevendo,onde a loucura,o humanismo,o medo e algum heroísmo,tinham denominador comum,garantia segura de amizade,justificação permanente para alguns desvios da normalidade,alívio precoce de consciências pesadas.Só então percebi que tinha chegado ao coração da guerra!

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

FEIRA DA LADRA

Aos primeiros raios de sol reflectidos nas águas calmas do Tejo,montam-se as tendas e estendais,mantendo viva uma feira a quem chamaram da Ladra.Ponto de encontro de feirantes e visitantes fiéis,passagem induzida e obrigatória de turistas curiosos.Os linhos,as roupas usadas e bafientas,misturam-se com louças de todas as idades,ferragens,óculos para ver ao perto e para corrigir cataratas,canetas e alfarrábios,violinos e cornetas e até supostas velharias e antiguidades!Na periferia, as tascas esgotam o stock dos pasteis de bacalhau,as febras grelhadas,os couratos fumegantes ou os pregos no pão,sempre acompanhados por um copo de vinho retirado directamente da pipa bem disfarçada no fundo da sala.Ás terças e sábados era quase obrigatória a visita!Ás terças por devoção e aos sábados por obrigação e tradição imposta pelo Chefe Lucas,no fim da visita médica aos doentes do Serviço.O Dr Lucas,com mais poder de compra que qualquer um de nós e sempre bem aconselhado,foi comprando alguns artigos de primeira qualidade.O saudoso Matos Ventura,preocupava-se quase exclusivamente com os alfarrábios relacionados com a segunda guerra mundial.O Maia Miguel,não abdicava da sua passada lenta e do seu ar descontraído,mostrando pouco interesse pelo material exposto,reservando a atenção para outro tipo de material que eventualmente pudesse aparecer.Eu,pouco abonado,armava em conselheiro e acabava por matar o vicío comprando algum prato partido,factor destabilizador e não poucas vezes gerador de total desacordo familiar.O Oliveira Antunes,atento a tudo o que desconfiasse ter valor,marcava desinteressadamente as peças que mais tarde iria buscar.Foi tambem aqui,que numa época em que os meus bolsos e os do amigo Casimiro Menezes, se encontravam mais vazios que o depósito de gasolina do N.S.U.,resolvemos arriscar a venda de um fato relativamente bem confeccionado e conservado,totalmente dispensável em função da dificuldade que se avolumava a cada minuto,de poder adquirir e ingerir qualquer tipo de alimento!Metemos a magnifica peça de vestuário num malão que transportámos na mala do carro, aliviado do peso do combustível,até ao gradeamento da feira,na proximidade do Hospital da Marinha.Acordámos que eu ficaria no carro mal estacionado, evitando qualquer multa inoportuna. O desejado negócio,essencial á nossa sobrevivencia,seria conduzido pelo Casimiro.Doeu-me a alma ver o meu amigo,magro,escoliótico e esfomeado,subir a interminável rampa, á procura de comprador!Doeu-me o corpo todo e em especial o estômago totalmente vazio,quando largos minutos depois, o vi regressar com ar furibundo,afirmando alto e bom som,não ter vendido o fato,já que o máximo que os desavergonhados oportunistas tinham oferecido,eram cem escudos,quando no minimo valia duzentos!Como era de esperar, nem mesmo a necessidade absoluta,foi suficiente para alterar uma questão de principio!Regressámos ainda mais preocupados e quase em hipoglicémia,mas orgulhosos da posição assumida,aproveitando as descidas, para em ponto morto, poupar a gasolina que nos havia de permitir chegar a casa da bela e suculenta D.Mira. Aí aconteceu o milagre habitual da Avó Maria!Á nossa espera,estava um vale de correio de quinhentos escudos,como sempre consequente ao sexto sentido daquela santa.Saudámos efusivamente a possibilidade de salvar o fato e a honra,mas principalmente o lauto jantar que se adivinhava na Mourama,restaurante galego,eleito em dias de festa e de alivio financeiro.Enquanto esperava e salivava pelo magnífico bife com presunto,ovo a cavalo e molho de natas permissivo ás sopas de pão,senti que a nossa amizade se consolidava á custa de episódios deste género e pela defesa dos princípios sagrados da ética comercial e moral,de que nunca abdicámos!Como de costume, apeteceu-me mandar uma curta mensagem para Aveiro:Deus lhe pague Avó!Avé Maria...

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

CORREIO, LADEIRAS, ARISTIDES E OUTROS

A vida nas aldeias,tem situações e personagens ímpares,que deixam marcas profundas e perduram ao longo do tempo,por vezes recriadas pela imaginação,mas quase sempre recordadas com saudade dolorosa,consequente á noção exacta que é impossivel voltar aos velhos tempos.Isto tudo porque me lembrei agora do desgraçado carteiro,correndo as aldeias de lés a lés,montado numa bicicleta presa por arames,mas preparada para o transporte de todo o tipo de notícias e encomendas,num grande e desgastado saco de couro.Alvo referenciado e preferido dos cães das redondezas,que provávelmente embirravam com a farda,não poucas vezes teve que dar ás de Vila Diogo,sob pena de levar nas pernas ou nas nádegas as marcas dos dentes do ágil e desvairado Rájá,fox-terrier comprado na capital do reino,transportado em cesto de vime no comboio até Aveiro e que se adaptou extraordináriamente bem á vida do campo.Marcou pontos durante muitos anos não só pela sua dedicação,mas tambem pela velocidade e agilidade com que fazia gincana entre os canteiros do jardim,ou perseguia tudo o que tivesse penas para desespero da Deolinda,defensora primária e intransigente, de «porcos com sua licença»,galinhas,patos,perús e periquitos!Era tambem ela uma criatura maravilhosa,limitada pela sua simplicidade e ingenuidade,integrada desde sempre na mobilia da casa,dedicada aos patrões e aos «meninos »até ás ultimas consequencias.Guardiã do templo quando a familia estava em S.Tomé,mantinha a apetência e o prazer de nos servir magnificos cozidos á portuguesa,ou ovos mexidos, muitas vezes comidos já a caminho do apiadeiro!Santa e saudosa criatura,de coração grande e alma pura,lágrima fácil e sorriso aberto de olhos fechados.Apenas o senão de embirrar com o Ladeiras,latagão da Carregosa,vendedor de sardinhas, fanecas e carapaus de olhos vidrados e revirados,perseguidos e desejados por atléticas varejeiras,tranportados em canastra fixada á bicicleta.Chapéu de abas na cabeça,molas de roupa nas calças para evitar o óleo da corrente,anunciava com o seu vozeirão e á cornetada,á senhora Deolinda,a presença do fresquissimo pescado,pronto a grelhar no fogareiro a carvão.Para além de outros factores mais ou menos íntimos,esta desfaçatez,desencadeava uma idiossincrasia mal disfarçada e nunca ultrapassada.Relação de amor-ódio mal entendida,que poderia muito bem ter sido aproveitada pelo senhor Magalhães de Fermentões,para escrever um romance,no intervalo e sequência das habituais crónicas na Imprensa Regional.Para além das notícias sociais,não poucas vezes divagava sobre as condições climatéricas ,concluindo e deduzindo se «o ano viria a ser bom para o caroço».Personagem respeitável e respeitada,de cultura acima da média regional,amigo da família e presença assidua na Missa dominical,quase sempre ao nosso lado e de uma pobre alma supostamente pecadora,que chorava desalmadamente cada vez que a campaínha tocava a Santos,o sapateiro-sacristão agredia o bronze dos sinos da igreja,ou o coro que integrava as vozes mais admiradas da região, acompanhadas pelo violino do Tio Zé,se esganiçava de olhos fechados, como os galos nos cânticos matinais!Finalmente uma justa referência ao Ti Aristides,moleiro de profissão,de estatura elevada e estatuto respeitado,passada larga e pesada,mãos e rosto enfarinhados e dono de experiente mula,que transportava no lombo,por caminhos mil vezes percorridos,pesados sacos de farinha de milho.Mula e moleiro,eram visitas assíduas da casa de Lanhezes e tambem responsáveis por cenas caricatas,repetidas sistemáticamente.Em dias de calor tórrido, chegava o velho Aristides ao portão,tirava a farinha para levar á senhora Deolinda e aí deixava solta, a cansada,carregada e encalorada mula.Mal o moleiro virava a esquina da casa,o majestoso exemplar avançava rápidamente para o relvado,onde se espojava com as quatro patas para o ar,espalhando farinha,limpando as narinas na relva e não se coibindo de esvaziar a bexiga antes de regressar ao portão!O desespero dos mais velhos ,contrastava com a satisfação da mula e a risota dos mais novos,que afirmavam perentóriamente que a mula do Ti Aristides «jogava á quarta»,expressão que ainda hoje integra o nosso vocabulário.Estas são algumas personagens que pelas suas caracteristicas marcaram uma época na pacata aldeia.Já todos partiram deste mundo,mas consta que o Ladeiras continua a vender peixe a todos os Santos,o Aristides vai acumulando sacos de farinha para o que der e vier e a Deolinda reza e chora todos os dias pelos seus meninos!Que a Paz do Senhor esteja com todos!