sexta-feira, 23 de julho de 2010

CATEQUISTAS

No regresso das aulas,havia por norma uma passagem rápida pela Igreja Paroquial.Algumas provocações ás raparigas que avançavam em grupo compacto,á distancia de segurança como estipulavam as regras da boa e saudável convivencia católica,eram substituidas por espreitadelas furtivas,pelo canto do olho,quando ajoelhados, punhamos em prática os ensinamentos aprendidos na escola,reforçados na catequese e exigidos no seio familiar.A minha catequista,menina Lurdes,devota de todos os Santos,crente em Deus mas principalmente no padre Vieira,brilhava nas suas funções e na missão que lhe tinha sido confiada.O fogo do Inferno ou o lume mais brando do Purgatório,eram permanentemente lembrados,atiçados e prometidos aos pecadores mais atrevidos,que se distraíam na missa ou tocavam com a hóstia nos dentes,na comunhão das primeiras sextas-feiras,altura em que ostentávamos orgulhosos as faixas de Cruzado!O preço a pagar por pertencer a tão ilustre Irmandade,era a obrigação, de ao deitar, rezar intermináveis e abomináveis jaculatórias,cuidadosamente anotadas em panfleto criado para o efeito.No final de cada mês a contabilidade penitenciária era enviada para Braga,para alívio de infieis e pecadores.O objectivo primário,para além de uma vida sem pecados,era a Primeira Comunhão,presidida pelo Senhor Bispo,para orgulho e prestigio do Padre Vieira e o deleite da menina Lurdes e Senhora Engrácia,tambem ela catequista,mais avançada na idade,de buço mais imponente,dente ralo e tia de quem poderia ter sido a minha primeira namorada se a tanto tivesse ajudado o engenho e a arte de a convencer a claudicar um pouco.Como é fácil de adivinhar a tarefa estava votada ao fracasso,mesmo depois do vibrante e emocionante discurso,feito a meias,no dia da Comunhão Solene!O discurso tinha sido cuidadosamente memorizado e ensaiado vezes sem conta,numa linguagem gestual e tons de voz adaptadas ao reconhecimento da sua pequenez,ao pedido veemente de perdão pelos pecados cometidos desde a gestação,á promessa solene de obediencia ás leis do Padre Vieira,aos ensinamentos das virgens Lurdes e Engrácia e com a benção do Senhor Bispo.Cairam então abundantes lágrimas de profunda emoção,pelos rostos dos Pais e Avós,principalmente da Avó Maria do Carmo,orgulhosa de um neto com carreira de tribuno garantida,discipulo de José Estevão ou quem sabe,futuro padre de brilhantes homilias.No meio de tudo isto ,o Tio Padre fazia um esforço descomunal para não adormecer,escondia as calças sujas de lama e óleo da velha moto,encurtando sempre que possivel as orações que lhe competiam,pensando certamente no lauto almoço que o esperava para a justa reposição das calorias perdidas em tão exigente cerimónia!Finalmente,a meio da tarde havia a procissão pelas ruas da aldeia,de vela na mão,rezando o terço e cantando louvores a Deus,no intervalo dos mistérios,pela santidade que era patente em todos nós.Pouco depois tive uma depressão,consequente ao fogo do Inferno que me estava seguramente destinado e que me aquecia ainda mais as noites quentes de verão.O Belzebu aparecia-me ao adormecer,de forquilha na mão e rabo fumegante,lembrando-me e cobrando o pecado mortal que eu cometia por me pentear dez vezes por dia!Não foi fácil apagar as chamas e ainda hoje me cheira a esturro!Este foi um dos motivos que me levou a entregar as opções religiosas aos meus filhos,que na idade adulta ou logo que sentissem necessidade,as assumiriam em pleno e conscientemente.Curiosamente todos mostraram vontade de ser baptizados chegando a frequentar a catequese durante meses.Só que,as meninas Lurdes e Engrácia do século vinte e um,entenderam que eles ainda não estavam suficientemente preparados para receber o sacramento, que deveriam ter aceite sem pestanejar quando eram bébés!!Creio que a estupidez, deveria ter lugar garantido e de destaque no rol dos pecados mortais!Até lá,que Deus lhes perdoe!

quarta-feira, 21 de julho de 2010

POBRES DA MINHA ALDEIA

Ainda a propósito da Avó Maria do Carmo,professora reformada,viuva ,chefe assumida e respeitada de uma familia numerosa,lenço na cabeça,xaile pelos ombros,chinelos da feira dos vinte e oito e principalmente a humildade que a sua fé em Deus impunha.Sabedoria feita de experiencia de vida e a bondade de uma alma santa que no meio de um largo sorriso,frequentemente se comovia até ás lágrimas!Determinou sem qualquer hipótese de revogação,que todos os pobres e desprotegidos da região,tinham direito a sopa quente e um naco de broa com sardinha assada na chapa do fogão de lenha.Simultaneamante,mandou construir um barracão,para que os mesmos pudessem pernoitar,sempre que tal fosse necessário ou desejável.Por lá passaram o Primavera,o Vintes e toda uma pleíade de figuras tipicas da região,que percorriam as ruas das aldeias vizinhas,na procura de uma felicidade que nunca tinham conhecido,de alguma comida que lhes tamponasse as úlceras gástricas,de um carinho negado ou da sorte sempre madrasta.Foi assim que me habituei a ouvir com todo o respeito as cantigas do Primavera:«Primavera tem lindas flores,como elas não há iguais!Primavera vai e volta sempre,mocidade vai e não volta mais!»Ou então num ritmo mais rápido e descontraido:«Cais,cais,oliveiras olivais,pintassilgos e pardais,rouxinois e caracois,cada vez há mais»!Apoiado no seu cajado inseparável,com manta de sacos velhos pelas costas,barba crescida e dentes alternados,era uma criatura simpática que naõ poucas vezes se cruzava com o Vintes ou o Augusto Camázio,seus companheiros de infortunio e tambem eles utentes do refeitório de Lanhezes!O Vintes era um reformado dos Caminhos de Ferro,alcoólico inveterado no activo,de nome e origem desconhecidos e que devia a alcunha ao facto de constar á boca cheia,ter escrito á Mãe,numa altura em que já nenhuma tasca lhe fiava os copos de três,dizendo:«Minha Mãe morri!!Manda-me vinte escudos para pagar o funeral!»Os vinte escudos que na época eram uma fortuna,nunca chegaram,o funeral nunca foi encomendado,mas a alcunha pegou de estaca!Já o Augusto Camázio era um gigante,acromegálico,com notável atrazo mental,natural das Cavadas de Cima e com uns pés tão grandes que nem de encomenda foi possivel arranjar sapatos que lhe servissem.Quando precisava de uns tostões, fazia uma rusga pelo pinhal do alheio,apanhava sacos de pinhas que transportava com toda a facilidade ás costas e que depois vendia aos vizinhos.Felizmente não tinha necessidade de anunciar a visita,já que o seu porte atlético via-se á distancia e os seus enormes pés martelavam o chão de tal maneira,que as paredes de adobe tremiam como se algum tremor de terra tivesse acontecido!Um perfeito dinossauro!Ainda uma referencia para o «Liósptero»,de familia mais abastada, mas apancado desde que nasceu.Ao Domingo ia á missa,de fato e chapéu na cabeça,banho semanal tomado,barba feita,á espera que um milagre lhe enchesse os bolsos de moedas,sem ter de responder aos miudos, que no fim das orações e a troco de alguns tostões, o rodeavam no adro e lhe pediam para dizer «gasómetro»!A resposta invariável e rentável, era «Lóspetro»...Assim se ganha uma alcunha!Estas e outras personagens inesqueciveis,eram parte integrante de uma vivencia humanista,com lugar cativo no genoma familiar,em que a curiosidade e alguma ingénua diversão,viviam paredes meias com o respeito pela condição humana,numa lição de vida,espontânea e insubestituivel!

quarta-feira, 14 de julho de 2010

MATRAQUILHOS

Desde muito novo que gosto de jogar matraquilhos.Foi talvez o recalcar de um sonho antigo,rápidamente transformado em pura desilusão,já que o facto de ter um bom pé esquerdo não foi suficiente para fazer de mim um futebolista profissional!E assim fiquei pelos matrecos ,onde atingi nivel brilhante e me tornei quase imbativel...Curiosamente, esse jogo esteve na origem de uma situação profissional vivida intensamente e que apesar de tudo terminou bem.Nos primeiros anos do meu Internato da Especialidade de Neurocirurgia,fazia urgencia no Serviço 10 do Hospital de S.José.Vinte e quatro horas de intensa actividade,decisiva na aquisição do autodominio e confiança na atitude cirurgica.Numa dessas noites fazia equipe com a Maria da Luz,excelente neurologista,com notável resistencia fisica,sorriso permanente nos lábios,mesmo nas situações mais delicadas.Já de madrugada e quando imaginava poder descansar um pouco,surgiu uma chamada urgente para o S.O.,que acabou com qualquer veleidade do merecido repouso!O bocejar e até o praguejar por tanta falta de sorte,eram normais,mas rápidamente deram lugar ao espanto indescritivel,em função do quadro dantesco na nossa frente!Numa maca estava deitado um caboverdiano,com um enorme punhal enterrado no cranio e que os maqueiros numa atitude tão espontanea quanto perigosa,tentavam arrancar!Felizmente o destino e o berro que lhes dei,não permitiu a concretização do gesto,que como fácilmente se deduz,teria originado a despedida de contemporâneo do doente...Toda a equipe de urgencia que rodeava a vitima,avançou curiosa e em passo acelerado,para o bloco de Neurocirurgia.Senti-me muito pequeno,em contraste com a angustia,a secura da boca e o aperto no peito que aumentavam a cada minuto.Ainda telefonei em desespero de causa,ao Chefe de Equipe,Dr Lucas dos Santos,manifestando-lhe a minha convicção de que a intrevenção iria terminar muito mal!Foi então que o seu carisma de Chefe não deixou duvidas e ordenou a intervenção imediata,pois apesar de entender perfeitamente a delicadeza da situação,tinha a certeza de que se eu o não operasse, a morte seria inevitável!Encostado á parede,com o peso e apoio de uma equipe inteira atrás de mim e ajudado pela Maria da Luz,consegui com muito trabalho,algum improviso e a sorte necessária,retirar os treze centimetros de punhal e tratar a ferida de cerebro!Cansado,mas naturalmente satisfeito,ainda tive tempo de reparar como os cabelos brancos se tinham oportunisticamente multiplicado em tão poucas horas...Adormeci profundamente durante a madrugada e logo que o barulho de mais um dia de trabalho no Serviço, me acordou,fui á enfermaria procurar o doente.Ao entrar caiu-me a alma e tudo o que se possa imaginar aos pés,pois na cama que lhe fora atribuida,jazia imóvel um corpo coberto por um lençol branco,habitualmente utilizado para cobrir os corpos despojados da alma!Com todo o cuidado,respeito e alguma curiosidade,levantei a ponta do lençol e deparei então com dois olhos brancos assustados,meio envergonhados e em contraste absoluto com a pele negra e luzidia!«Como te chamas?» «Alcides»!«Que aconteceu?» «Estava a jogar matraquilhos com meu amigo,eu meteu golo,ele não gostou e meteu faca na minha cabeça!»Natural e simples de mais para ser real,mas foi mesmo assim!O punhal,foi sábiamente desviado nessa manhã,, pelo saudoso Dr Vasconcellos Marques,que me jurou a pés juntos e seguramente a fazer figas,que me devolvia o troféu a curto prazo...A verdade é que o prazo se dilatava sempre que eu lho pedia e como tal nada feito!A partir desse dia e durante muitos anos,sempre que me apetecia jogar matraquilhos,olhava duas vezes para os adversários e na duvida preferia não marcar golos!

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Num mundo de siglas,gostaria de seleccionar duas:CR9,que toda a gente conhece e venera,e CR10,recem-nascida e que acabei agora mesmo de registar a patente.CR9,Cristiano Ronaldo,ex-CR7,ex-melhor jogador do mundo,vaidoso quanto baste,nada solidário com os companheiros de equipe e o seu seleccionador,que parece ter sido Pai em barriga alugada e até agora ignorada,apesar de seguramente ter á sua disposição milhares delas conhecidas e gratuitas!Há razões que a razão desconhece ,mas até lá,não deixa de ser esquisito.CR10,Cristina Reis,Prémio Gulbenkian de arte 2010,alma robusta em corpo franzino,que transpira arte e bom gosto por todos os poros!Valor estético directamente proporcional a uma humildade que roça a vergonha pelo reconhecimento universal de uma obra de qualidade indesmentível!Parangonas nos jornais para o filho desconhecido do CR9,duas linhas para CR10 nos rodapés dos telejornais!A sobrevivencia material,faz-se á custa da venda de noticias sensacionais,da coscuvilhice barata,do recurso a meia duzia de personagens sociais sem qualquer conteudo validável, para além do gesto que lhe possa ser atribuido ou induzido.Os outros, os que nos alimentam o espirito e nos refrescam a alma,os que se desgastam uma vida inteira na procura de novas formas de arte,os que nos transmitem mensagens solidárias, não vendem jornais e na maior parte dos casos estão votados ao reconhecimento póstumo!Curiosamente a glória efémera de uns contrasta em absoluto com a eternidade dos outros.Lamento-te CR9 e apesar dos teus milhões,não te invejo minimamente!Saúdo-teCR10 e confesso-te humildemente a minha inveja descontrolada!

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Ao ler o artigo que a Clara Ferreira Alves escreveu no Expresso,fazendo alusão á atitude do bom Povo Português,perante os casos de corrupção,enriquecimentos subitos,abusos sexuais e outros que tais,numa lista infindável de situações anómalas que vão fazendo as manchetes dos meios de comunicação social ,para depois se diluirem ,em prescrições permanentes de uma justiça que não existe,apeteceu-me recuar no tempo e voltar á minha aldeia!Aì tive uma infância feliz,fiz a instrução primária,lidei com gente simples,humilde,de mãos gretadas pela terra,mas de uma transparencia e pureza de espirito sem igual.A honra era estatuto e o trabalho condição unica para uma vivência plena de dificuldades.Na escola éramos um bando de pardais á solta,bebendo de quando em vez a sabedoria do competente e saudoso professor Barreto.No recreio recheado de tocas de grilos,jogavam-se partidas intermináveis de futebol, do tipo«muda aos dez acaba aos vinte»,rachavam-se ao meio os piões dos amigos com as poderosas monas de bico largo,jogava-se ao botão mesmo correndo o risco das calças nos caírem a curto prazo e do fatal ralhete familiar!No final das aulas , o regresso a casa em grupo de malta fixe,percorrendo o sobreiral,respirando o ar puro dos pinheiros ao ritmo das searas ondulantes.De vez em quando o Zé Coelho dava uma corrida para manter o estatuto e justificar o apelido,o Pixalau dizia graças que só ele entendia, o Zé da Boiça mantinha-se em reflexão permanente,o Eugénio fazia-se mudo ,o Hélio gaguejava e o Arménio Zeferino conjugava o verbo cujar no presente do indicativo!Breve passagem por casa da Avó Maria do Carmo para roubar um rojaõ ao unto ou uma sardinha assada pingando gordura no naco de broa.No tempo da matança do porco com um pouco de sorte e engenho,podia-se saborear uma morcela subtraída á enorme salgadeira.Chegada a casa, transpirados,sujos até ás ultimas consequencias,mas felizes e convencidos que éramos os donos daquele mundo que acabava na linha do horizonte,adormecia quase sempre á mesma hora depois dos pavões tocarem a recolher,acordava pouco depois dos galos da Tia Ludovina cantarem e não poucas vezes se assustava,com o apito do comboio a chegar ao apiadeiro.Celebres jogos de hoquei em patins,numa eira inclinada,jogados com talos de couve e que normalmente terminavam mais cedo,por imposição do bruto Adriano,feitor mal humorado e sem qualquer problema em nos manifestar a sua antipatia.Restava-nos ouvir a Celeste,empregada doméstica,apancada e movida a gaz que lhe saía em ruidosas e frequentissimas eructações,cheias de decíbeis,de um estomago há muito transformado em cuba de fermentação!Ao Domingo era a missa para ouvir o padre Vieira,padrinho de uma tribo notável , que do pulpito e de olhos revirados,se esgotava no apelo ao apedrejamento de atrevidas e gastas prostitutas,que apareciam com alguma frequencia no apiadeiro e faziam dos milheirais ,os seus ninhos de amor negociado! De vez em quando uma mulher «possessa»exemplificava o ritual satânico com gritos e movimentos estereótipados,que interrompiam a missa e obrigavam á marcação de uma visita ao nosso Tio Padre de Pedaçães,perito entre outras habilidades natas,em correr com os espíritos,á custa dos salmos indicados e principalmente de valentes enxurros de pancada!Vivencia que recordo com saudade e sei que não volta mais!É esta pureza que se foi perdendo na razão directa da evolução cultural,triturada pela concorrência desleal,destronada por uma postura social falsa e amorfa, ditada por improvisações políticas e lamentáveis atitudes profissionais.Não foi esta a democracia que sonhei e por que lutei!Falta-lhe conteúdo,falta-lhe espontaneidade,falta-lhe ambição,estrutura e estatura moral!Talvez por isso dava tudo para voltar á minha Escola Primária,jogar ao botão,caçar grilos no recreio e depois fechado no espigueiro velhinho,imaginar que tudo o que agora acontece é apenas um sonho mau de juventude!