quarta-feira, 14 de julho de 2010

MATRAQUILHOS

Desde muito novo que gosto de jogar matraquilhos.Foi talvez o recalcar de um sonho antigo,rápidamente transformado em pura desilusão,já que o facto de ter um bom pé esquerdo não foi suficiente para fazer de mim um futebolista profissional!E assim fiquei pelos matrecos ,onde atingi nivel brilhante e me tornei quase imbativel...Curiosamente, esse jogo esteve na origem de uma situação profissional vivida intensamente e que apesar de tudo terminou bem.Nos primeiros anos do meu Internato da Especialidade de Neurocirurgia,fazia urgencia no Serviço 10 do Hospital de S.José.Vinte e quatro horas de intensa actividade,decisiva na aquisição do autodominio e confiança na atitude cirurgica.Numa dessas noites fazia equipe com a Maria da Luz,excelente neurologista,com notável resistencia fisica,sorriso permanente nos lábios,mesmo nas situações mais delicadas.Já de madrugada e quando imaginava poder descansar um pouco,surgiu uma chamada urgente para o S.O.,que acabou com qualquer veleidade do merecido repouso!O bocejar e até o praguejar por tanta falta de sorte,eram normais,mas rápidamente deram lugar ao espanto indescritivel,em função do quadro dantesco na nossa frente!Numa maca estava deitado um caboverdiano,com um enorme punhal enterrado no cranio e que os maqueiros numa atitude tão espontanea quanto perigosa,tentavam arrancar!Felizmente o destino e o berro que lhes dei,não permitiu a concretização do gesto,que como fácilmente se deduz,teria originado a despedida de contemporâneo do doente...Toda a equipe de urgencia que rodeava a vitima,avançou curiosa e em passo acelerado,para o bloco de Neurocirurgia.Senti-me muito pequeno,em contraste com a angustia,a secura da boca e o aperto no peito que aumentavam a cada minuto.Ainda telefonei em desespero de causa,ao Chefe de Equipe,Dr Lucas dos Santos,manifestando-lhe a minha convicção de que a intrevenção iria terminar muito mal!Foi então que o seu carisma de Chefe não deixou duvidas e ordenou a intervenção imediata,pois apesar de entender perfeitamente a delicadeza da situação,tinha a certeza de que se eu o não operasse, a morte seria inevitável!Encostado á parede,com o peso e apoio de uma equipe inteira atrás de mim e ajudado pela Maria da Luz,consegui com muito trabalho,algum improviso e a sorte necessária,retirar os treze centimetros de punhal e tratar a ferida de cerebro!Cansado,mas naturalmente satisfeito,ainda tive tempo de reparar como os cabelos brancos se tinham oportunisticamente multiplicado em tão poucas horas...Adormeci profundamente durante a madrugada e logo que o barulho de mais um dia de trabalho no Serviço, me acordou,fui á enfermaria procurar o doente.Ao entrar caiu-me a alma e tudo o que se possa imaginar aos pés,pois na cama que lhe fora atribuida,jazia imóvel um corpo coberto por um lençol branco,habitualmente utilizado para cobrir os corpos despojados da alma!Com todo o cuidado,respeito e alguma curiosidade,levantei a ponta do lençol e deparei então com dois olhos brancos assustados,meio envergonhados e em contraste absoluto com a pele negra e luzidia!«Como te chamas?» «Alcides»!«Que aconteceu?» «Estava a jogar matraquilhos com meu amigo,eu meteu golo,ele não gostou e meteu faca na minha cabeça!»Natural e simples de mais para ser real,mas foi mesmo assim!O punhal,foi sábiamente desviado nessa manhã,, pelo saudoso Dr Vasconcellos Marques,que me jurou a pés juntos e seguramente a fazer figas,que me devolvia o troféu a curto prazo...A verdade é que o prazo se dilatava sempre que eu lho pedia e como tal nada feito!A partir desse dia e durante muitos anos,sempre que me apetecia jogar matraquilhos,olhava duas vezes para os adversários e na duvida preferia não marcar golos!

Sem comentários:

Enviar um comentário