sexta-feira, 19 de novembro de 2010

FIGURAS TÌPICAS DE AVEIRO

Em Aveiro,como seguramente em qualquer outro lugar,havia uma série de personagens conhecidas de toda a gente.Uns ,pela sua excentricidade consequente a grande dose de atraso mental,ou pelo menos a um razoável desvio do padrão considerado normal,outros pelo humor ou postura que conseguiram manter ao longo dos anos.
No primeiro grupo,tinham lugar destacado o Luisinho de Viseu,o Japão e o Pum!Personagens com características diferentes,tinham em comum sinais evidentes de forte pancada cerebral à nascença,a que se juntava no caso do Luisinho,marcada atrofia física.Era uma criatura com pouco mais de um metro e vinte de altura,presença garantida e indispensável em tudo o que fosse manifestação social pública,nomeadamente nas de culto religioso tradicional,como as bonitas procissões,que anualmente se renovavam e percorriam as ruas da cidade.O Luisinho vestia-se a rigor,de casaca,cartola e bengala de cabo de prata na mão,que brandia, na cabeça do cortejo, marcando o ritmo do desfile.Ai de quem tivesse a infeliz ideia de se atravessar no percurso,ou de impedir o bom e ritmado andamento da procissão,também ela abrilhantada pelas bandas de música da região!A bengala deixava de ter a função meramente decorativa,para deixar marcas nas costas dos mais atrevidos ou distraídos!Foi também ele, que numa época em que os automóveis ainda eram novidade,foi apanhado pelo meu Avô,a tocar desalmadamente a buzina do Fiat descapotado, de estimação.Quando chamado á atenção,respondeu filosóficamente:«Não se preocupe sr. Tenente-Coronel,pois quando eu tiver o meu,também lhe dou autorização para tocar a buzina sem qualquer problema!».Atitude apesar de tudo subtil,em contraste absoluto com o estilo do Japão ou do Pum.O Japão era um pobre diabo albergado em casa de família abastada,que percorria diáriamente as ruas da cidade,exibindo o seu sorriso cretinóide,não deixando qualquer dúvida sobre a sua sanidade mental.Era o alvo preferido da rapaziada estudantil,que o provocava amigávelmente e a quem ele respondia com violentas pancadas dos pés descalços no pavimento dos passeios,emitindo um estalido que fazia as delícias da malta!Cena repetida vezes sem conta,resposta simples de um circuito cerebral primário,que o viria a eternizar na memória dos cagaréus.
O Pum também não devia nada ao equilibrio mental,embora tivesse outro género de personalidade`.Và-se lá saber porquê,não suportava que alguém imitasse o deflagrar de uma bomba ou foguete!Ao seu ar sério e de poucos amigos, juntava-se uma louca correria atrás de quem dissesse «pum»!A perseguição pelas ruas da cidade,só terminava quando o perseguido conseguia abrigo em qualquer vão de escada,afastando-se do raio de visão do Pum!Olhava para todos os lados,de olhos esbugalhados e dentes arreganhados!Só quando se convencia que tinha perdido a presa,se retirava embrulhado nas mantas imundas que o cobriam de dia e lhe serviam de colchão á noite,resmungando até á exaustão a sua lista de palavrões.
Mais duas personagens que fazem parte da história da cidade,não por insanidade mental,mas pelo papel que tinham no dia a dia da nossa adolescência.A Dona Maria,velhinha embrulhada no seu xaile da beira-mar,sentada na esquina do adro da Sé,com banca de tremoços,pevides,fava rica,cavacas e caramujos carregados de creme amarelo!Estratégicamente colocada no trajecto obrigatório do regresso das aulas matinais,era atracção fatal e estímulo garantido de estômagos esfomeados em hora de refeição.Ainda não esqueci o sabor único daquelas iguarias, que hoje seriam seguramente apreendidas por uma qualquer brigada da Asai!
Finalmente,o Quiosque dos jornais nos Arcos,propriedade do Manel e do Feliciano,ponto de encontro obrigatório,tertúlia certificada do Beira-Mar,fonte inesgotável de novidades desportivas e sociais,convergência natural de escândalos e rumores,onde também se vendiam o Tim-Tim,o Zorro e até o Artes e Letras,para os mais intelectualizados!Localizado no centro da cidade,era ponto de passagem obrigatório e diário,no fim das aulas,das sessões de estudo ou das explicações.Grupo coêso,onde os conhecimentos desportivos,as manifestações pseudo-culturais,a má-lingua social e a irreverência estudantil coabitavam sem qualquer problema.No entanto,para se ter acesso directo e em pleno ao grupo,era necessário ser submetido a uma praxe tão tradicional quanto antiga.O candidato era convenientemente preparado e avisado para manter a todo o custo o segredo que lhe ia ser confiado, em cerimónia condigna,logo que fosse considerado capaz de entender a sua essência!Chegado o dia da confirmação programada e devidamente publicitada,reunia-se a clacke no quiosque, pronta a saudar efusivamente a entrada do novo elemento!Então,por artes mágicas, aparecia o Manel ou o Feliciano,com um volumoso objecto embrulhado em jornais,que era entregue com todo o cuidado ao candidato, para ser desembrulhado.Quando depois de remover as folhas de jornal,percebia a presença de um magnífico e majestoso exemplar de louça das Caldas,devidamente assinado e certificado,o seu ar de espanto, era saudado com uma salva de palmas e a risota geral,que garantiam a sua admissão imediata!Praxe inofensiva,atrevida para a época,que só os homens podiam presenciar e que ainda faz parte integrante da memória desgastada da nossa geração envelhecida!Ainda hoje, não me importava de levar uma bengalada do Luisinho de Viseu,ouvir as patadas do Japão ou correr desalmadamente na frente do Pum,depois de comprar cinco tostões de pevides na Dona Maria da Sé!
.

Sem comentários:

Enviar um comentário