quarta-feira, 3 de novembro de 2010

CALOIRO

Há cerca de quarenta e oito anos, cheguei a Coimbra na reles condição de caloiro e como tal, com um estatuto social muito abaixo de cão! Entrei na Pensão Doméstica, no número 14 da Rua Alexandre Herculano, da velha D. Amélia, carregada de flatos e já muito carcomida pelo caruncho, delegando funções e a gestão na sobrinha, também ela Amélia, sirigaita de dentinho maroto, sem nada dever à beleza e que entre outros responsos, me foi desde logo avisando que apenas tinha direito a dois banhos por semana e que os eventuais abusos de higiene pessoal, seriam pagos a vinte e cinco tostões a unidade! Alertou-me com ar de poucos amigos que aquela era uma casa séria, onde viviam para além do professor Orlando de Carvalho, o Dr Jorge Moreira da Silva, o sr. Loureiro da casa Campeão, duas professoras de liceu que dormiam pelo menos no mesmo quarto e mais um caloiro de seu nome Jorge Coelho, que estava a chegar de Viseu, para também ele tentar ser médico. Às refeições, ainda teriamos a companhia de um professor primário e do Jorge Strecht, na altura aluno do segundo ano de Direito. Ainda a palestra de boas-vindas não tinha acabado e já um estudante de Direito, de capa e batina e pasta dobrada na mão, se apresentava como sendo o Artur Beleza de Vasconcelos, ordenando-me que o acompanhasse, sem sequer me dar hipótese de arrumar a mala! Sem saber o que me esperava, acompanhei o doutor Beleza à distância conveniente e inerente à minha desgraçada condição de caloiro fedorento, até à República Baco,onde me esperava calorosa recepção e se adivinhava o mesmo destino da meia dúzia de parceiros de estatuto e de desgraça, apanhados na rede da praxe, que já prestavam provas e mostravam as habilidades de que eram capazes ,enchendo de gozo a barriga dos mais velhos!Quando confirmei que era de Aveiro,ordenaram-me que fizesse de Farol da Barra,para de seguida dançar o fado de Coimbra em ritmo de valsa e ser violentamente criticado por o ter feito,desrespeitando em absoluto a tradição e o estatuto a ele inerente!Fui condenado a contar grupos de dez pêlos nas pernas dos outros caloiros,utilizando o décimo primeiro para os amarrar!A sessão terminou,com um penico na cabeça e uma vassoura ao ombro,gritando«ás armas»sempre que alguma miúda mais gira o justificasse.O bom desempenho,permitiu que a sessão terminasse relativamente cêdo, por entre abraços e promessas solenes de protecção, a que tinha direito por ser considerado caloiro daquela República.Atitude saudável,que me desinibiu,proporcionou o primeiro contacto com o ambiente coimbrão e integrar orgulhoso, o estatuto de estudante da Universidade de Coimbra.
O Artur Beleza,não sabia bem a dimensão das escadas do Quebra-Costas e pediu-me para as confirmar com o palito métrico tradicional,rematando assim da melhor maneira a sessão que ele mesmo tinha iniciado!Começou nesse dia uma amizade sincera,que nunca esqueci,apesar de há muitos anos não ter qualquer contacto com o meu amigo.
Á noite ,foi a primeira «refeição em família»,não tendo sido difícil perceber que me esperava um ambiente,onde a cultura geral e a política de contestação á ditadura se complementavam, para serem factor decisivo na minha formação,como homem e cidadão.O convívio foi-se tornando cada vez mais familiar,com uma componente alegremente didáctica,naturalmente politizada,mas com discussão de ideias totalmente aberta,sem restrições de qualquer espécie,que se prolongava para o Mandarim,ponto de encontro obrigatório.Era aí que quando as finanças o permitiam,se colmatava o furo gástrico, que a posta de peixe espada grelhado e a folha de alface amarelada,da Pensão Doméstica,não eram suficientes para tamponar!Era lá que se delineavam estratégias,actualizavam as notícias políticas segredadas ao ouvido ,evitando e tornando inuteis os esforços dos pides atentos a tudo e a todos.Foi lá que se viveu intensa e apaixonadamente a greve académica,o rescaldo dos plenários e acções de rua,as sequelas dos encontros com a polícia de choque e até a tristeza do fim do movimento, coincidente com a prisão e expulsão de alguns amigos,após a tomada da sede da Associação Académica.
Pelo meio a tradicional Latada,onde como caloiro imundo fui vestido de mulher mamuda,mais uma vez de penico na mão,servindo de cinzeiro do Pedro Lemos,finalista de Medicina,quase conterrâneo e amigo de longa data.Ainda o desfile não tinha chegado aos arcos do Jardim Botânico e já eu, que normalmente não bebia, tinha meia garrafa de brandy no estômago! O resultado era previsível! Cumpri na íntegra a missão complementar de conseguir o número de telefone das garotas giras que fosse encontrando pelo caminho e pudessem ser candidatas a noivas do Doutor. Só quando depois de um sem número de piropos e elogios, dirigidos a mais uma potencial candidata, a ouvi a tratar-me pelo nome próprio, percebi vagamente que tinha posto a pata na poça, como mais tarde, numa visita de cortesia que a respeitável senhora fez à minha Mãe, viria a confirmar! Foi o pretexto para instintivamente abandonar o cortejo, já no fim da Rua Ferreira Borges e tentar o regresso aos meus aposentos. Lembro-me vagamente que ainda me meti com algumas enfermeiras da "Aldeia das Macacas" e depois foi o apagão completo. Acordei todo partido, dentro do guarda-fatos, voltei à realidade e descansei os amigos que me tinham procurado por todo o lado e que mais tarde haveriam de me oferecer uma miniatura do guarda-fatos como comemoração do feito. Era assim a Coimbra do meu tempo! Cultura, Política e Boémia em amálgama compatível e saudável, fermento de amizades vitalícias, condimento imprescindível na formação de gerações. Confesso a minha tremenda saudade!

Sem comentários:

Enviar um comentário