domingo, 2 de outubro de 2011

A VELHA E O BURRO!

Dei comigo a recordar algumas cenas vividas nos hospitais onde trabalhei muitos anos,nomeadamente a nível da urgência.A par de situações extremamente graves,que nos obrigavam a utilizar todos os conhecimentos adquiridos, todos os recursos disponíveis e quantas vezes a improvisar soluções,viviam-se periódicamente alguns casos hilariantes,mas também e não poucas vezes,comoventes.Foi o caso de uma senhora de idade, politraumatizada,vitima de um acidente de viação,que envolvera um automóvel de alta potência e a carroça conduzida pelo marido e movida pela potência de um velho burro,elemento essencial e companheiro fiel nas madrugadas a caminho das feiras,carregada de boa hortaliça e fruta fresca sem bicho,cultivadas a preceito e também com amor ,no sua pequena quinta.O marido ficara pior que ela,a carroça completamente desfeita e o burro inutilizado,tinha sido abatido ao efectivo!Dei naturalmente prioridade á observação e estabilização do senhor e só depois me dirigi ao S.O de mulheres,onde a senhora já estava medicada e relativamente bem.Mal tinha chegado á beira da sua cama,fui imediatamente interrogado sobre o estado do animal!Apanhado de surpresa,ainda pensei que se estivesse a referir «carinhosamente» ao marido,mas não tardei a perceber que a preocupação primária,era referente ao burro e não ao companheiro de uma vida!Escusado será dizer que não lhe dei a triste notícia da morte do seu animal de estimação,factor essencial na concretização do pequeno e velho negócio de feirante,que lhe garantira o sustento,durante muitos anos.A partir desse dia,passei a entender melhor a Deolinda,empregada muito antiga da Família,que nos ajudara a criar a todos,sublime cozinheira,de alma tão boa quanto ingénua,que apenas nos trocava pelos seus pássaros,coelhos,cães e alguma macaca vinda de São Tomé,com quem conversava horas seguidas,num dialecto que nunca entendi e sempre invejei!No entanto,aprendi com a sua atitude,a respeitar não só os animais,como as pessoas a quem a ingenuidade reforça a afectividade e conduz a uma espécie rara de vivência feliz!Talvez por isso ,acabei por entender e desculpar, a velhinha atropelada.

1 comentário:

  1. Li poemas e prosas e gostei. Revelam muita sensibilidade e um querer muito forte.
    Este episódio carinhoso e caricato fez-me regressar a 1960, internado no hospital, na sede do meu Concelho. Como estive por lá cerca de dois meses, numa enfermaria tipo caserna de quartel, tive ocasião de ver chegar e partir muitos outros pacientes, alguns dali para o cemitério. De entre estes devo aqui trazer uma história "parecida" com a sua.
    Eu era um jovem de 17 anos e ele naquela idade em que já pouco há que esperar. Muito doente mesmo - acabaria por lá falecer - nos seus delírios estava sempre um pensamento fixo, noite e dia:
    - Ó Maria, então o burro?! Já deste água ao burro?
    E assim até ao último suspiro. Companheiros de uma vida - mais curta a do burro - aquele querido velhinho não esqueceu o companheiro de tantas canseiras.
    Abraço
    Vou daqui fazer um texto sobre esta longínqua recordação para o meu blog...

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