quarta-feira, 27 de outubro de 2010

CASULA

Casula,era um pequeno aldeamento,no meio da enorme província de Tete,onde estava sediado um Batalhão de Caçadores e iria acontecer a minha primeira missão sanitária da guerra colonial.
Ao sair do avião,que aterrou na pista térrea,constatei a existência de meia dúzia de barracões de zinco num terreiro onde ondulava imponente a bandeira nacional e dormiam descansados e bem tratados,meia dúzia de cães do mato,rafeiros,adoptados pelos soldados.A fúria de regressar no mesmo avião que me tinha levado,do colega que eu ia substituir,não permitiu qualquer tipo de transmissão de funções!
Mala pousada em luxuoso quarto,utilizado a meias com o Capelão,senti estar a ser observado por dezenas de olhos curiosos e esperançados no apoio médico e psicológico que lhes poderia vir a dar,bálsamo ideal para os sacrifícios e riscos diários que se pediam áqueles bravos soldados.Em vez de uma enfermaria,havia uma minúscula tenda de campanha e um atrelado sanitário que ninguem se atrevia a abrir,para evitar perdas sempre penalizantes, para os enfermeiros responsáveis.Desde logo ficou combinado e autorizado pelo comandante,que se iria construir uma enfermaria condigna e funcional.Mobilizadas todas as boas vontades e especialidades dísponiveis,foi possível pouco tempo depois inaugurar um pavilhão ,que nos encheu de orgulho,com sala de consulta,uma pequena farmácia e uma enfermaria com doze camas,prontas a receber qualquer situação mais delicada.Simultâneamente,abriu-se o atrelado sanitário,bem fornecido de material cirúrgico e fármacos de toda a espécie, que viriam a ter uma importância crucial ao longo dos tempos.Consolidada a estrutura de apoio médico na sede do Batalhão,passei a fazer itenerâncias, em pequenos e velhos monomotores(D.O.),capazes de aterrar ou levantar em menos de 100 metros de pista,abanando por todo o lado,sem qualqure tipo de insonorização e que até deitavam fumo do equipamento de rádio!Antes de levantar vôo,não poucas vezes o piloto saltava nas asas,alinhando e restituindo um minimo de simetria á máquina voadora!Rodas travadas,motor no máximo de rotações,barulho ensurdecedor,alma entregue ao Criador!Logo que o travão era aliviado,o impulso gerado atirava a D.O. para a estratosfera em menos de cinquenta metros e depois era sempre para a frente!
Era necessário tambem,prestar assistência á população civil,encurralada num aldeamento com cubatas de barro e telhados de colmo,sob vigilância militar,da Pide e do Administrador civil, nativo,tão esperto quanto corrupto e desonesto,que vivia numa mansão na colina e que todos os dias escolhia criteriosamente a virgem que o iria acompanhar nas noites longas do trópico,para desespero do santo e ingénuo Capelão!
Um pouco mais á frente,o denominado e pomposo Hospital Civil,antigo posto de combate á doença do sono e respectivas moscas,agora adaptado ás novas funções.O apoio de dois enfermeiros,um deles Almirante de seu nome!Deslocava-me diáriamente no jeep que me tinha sido atríbuido,afastando-me cerca de cinco quilómetros do quartel,conduzido pelo meu motorista e acompanhado pelo Cabo-enfermeiro,sem qualquer tipo de arma,apesar dos protestos permanentes dos entendidos.Curiosamente,nos primeiros tempos,era total a indiferença da população.Até os miúdos que pareciam feitos de chocolate,nalguns casos com recheio nasal,que habitualmente são extremamente expansivos,pareciam condicionados por instruções vindas de alguem mais desconfiado ou politizado.Após uma noite inteiramente passada na tentativa coroada de êxito,de controlar um bébé em mal epiléptico por paludismo cerebral,tudo mudou como por encanto!Os miúdos passaram a apanhar boleia no meu jeep,de olhos brilhantes,sorrisos abertos e laringes afinadas!Os mais velhos,saudavam-nos de mãos postas e vénias solenes,enquadrando o inesquecível«SALEMA!»A confiança e a amizade mútua cresciam a olhos vistos,a ponto do Almirante me pedir para ser padrinho de um neto, a quem queria á força pôr o nome de Almirante Carlos Sereno!Ao fim de longas negociações e algums «cucas»,ficou apenas Almirante Sereno...
Para além de médico, passei a ser conselheiro,confidente e até o ponto de referência para frequentes protestos e lamúrias colectivas.Foram apesar das circunstâncias,tempos felizes,de realização profissional e em que me senti pela primeira vez,socialmente útil!
No dia em que deixei Casula por ter sido transferido,pedi ao piloto que sobrevoasse uma última vez o aldeamento.Testemunhei o adeus sentido dos meus amigos,percebi que um pouco de mim ficava para sempre com eles,num marco de vida inesquecível e experiência profissional ímpar!Mais tarde, quando a guerra terminou,recebi uma carta do meu amigo e compadre Almirante,manifestando amizade e gratidão pelo que tinhamos conseguido fazer em benefício daquela gente.Por portas travessas vim a confirmar o que desde sempre desconfiara.O Almirante,era um dos quadros regionais mais importantes da Frelimo!

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