sexta-feira, 1 de outubro de 2010

SITUAÇÕES CRÌTICAS NA URGÊNCIA

Como é fácil de calcular,o Serviço de Urgência de um grande Hospital,tem necessáriamente alguns casos,que pela sua especificidade,raridade ou bizarria,ficam para sempre na memória dos intervenientes.A sua descrição resiste a gerações de médicos,alertando-os para situações em que a atitude cirúrgica correcta,o bom senso clínico e muitas vezes a capacidade de decisão ou improvisação,têm papel preponderante na sua resolução.
Recordo a entrada directa no S.O. de um alto quadro de uma conhecida Instituição,que resolveu utilizar um belo punhal de cabo de marfim,para testar a resistência da sua grelha costal e principalmente do seu músculo cardíaco!A entrada no bloco operatório foi imediata,de punhal pulsátil,tamponando uma ferida do ventrículo esquerdo,posteriormente suturada pelo competente e polivalente Cirurgião-Chefe Dr. Gomes Rosa,com a nossa humilde colaboração.Um post-operatório sem problemas,permitiu o regresso rápido ás suas funções,com a proibição absoluta de se aproximar de qualquer tipo de arma branca ou similar!
Também numa madrugada que nunca mais esqueci,o médico que estava de vela,veio ao quarto onde descansava um pouco,alertando-me para uma situação estranha,que ele não entendia bem,pedindo a minha observação,para poder acreditar no que pensava ter visto!O meu acordar tradicionalmente resmungão,terminou ao constatar a presença de uma doente relativamente nova,com ar assustado e delirante,a quem não foi difícil fazer o diagnóstico de ruptura uterina,permitindo a saída pela vagina de uma ansa intestinal já necrosada!Situação de brutalidade difícil de imaginar e aceitar,obrigou uma vez mais o Cirurgião a intervir de imediato.Na exploração da cavidade abdominal,constatou-se a existência de um feto morto,aparentando ter cerca de cinco meses,totalmente fora de um útero desfeito e navegando entre as ansas intestinais!Á delicada e complexa intervenção cirurgica,seguiu-se um post-operatório turbulento,com a mais que prevísivel septicémia,que com muito esforço,não menos antibióticos e alguma sorte, se conseguiu debelar.Durante todo o tempo de internamento,a doente negou terminantemente qualquer manobra abortiva,seguramente na génese daquele descalabro.Curiosamente,alguns anos depois,no consultório do Sindicato do Comércio e Indústria em Lourenço Marques onde eu fazia consulta para tentar complementar o miserável vencimento de Alferes-Médico,entrou silenciosa mais uma doente.Quando levantei os olhos da ficha de identificação,deparei com um rosto conhecido,que não conseguia referenciar a qualquer situação ou local.Foi então que de sorriso triste e alguma comoção na voz,se identificou como sendo a doente operada na Urgência de São José!Tinha percebido que eu trabalhava naquela Clínica e achou por bem ir ter comigo, para finalmente assumir as manobras abortivas que sempre negara!Estupefacto, não consegui reagir.Enquanto tentava alinhavar o discurso adequado, para apesar de tudo lhe agradecer a concordância tardia e até talvez a aliviar de algum sentimento de culpa,a senhora levantou-se,sorriu uma última vez e saiu porta fora,tão silenciosa quanto tinha entrado!Confesso que a consulta terminou ali e que durante algum tempo andei sem rumo
pelas ruas da cidade,digerindo o que acabara de me acontecer e pensando como é complexa e imprevísivel a reacção do ser humano!
Frequentes e de natural predomínio nocturno,tremendas bebedeiras,que terminavam nos balcões, após diálogos de surdos e muita coramina intravenosa.Os «desvios sexuais»obrigavam muitas vezes os envergonhados prevaricadores,a recorrer á urgência,para tentar resolver situações mais ou menos delicadas,quase sempre mobilizadoras da curiosidade geral e do riso difícil de conter.Eram relativamente frequentes,acidentes de percurso ,envolvendo os mais diversos objectos,como as cargas de esferográficas intra- vesicais,garrafas de sumo ou cerveja e até um frasco de Tofa,que deu um trabalhão para ser retirado de um rubicundo artista,que resolvera beber café, pelo sítio menos conveniente!Corria á boca cheia,a história de um cavalheiro que deu entrada no balcão de roupão de seda,perfeitamente atrapalhado e envergonhado.Quando lhe perguntaram o que o tinha levado ali,afastou com gesto afectado o roupão que o cobria,pondo a descoberto a ramagem de um magnífico nabo,que segundo afirmava,entrara acidentalmente, por onde devia sair depois de convenientemente digerido!Desta não fui testemunha,mas lá que se contava,contava!
Muito mais situações poderia descrever,umas hilariantes,outras profundamente tristes e desgastantes.Era assim aquele Serviço de Urgência,escola de virtudes,paredes meias com o desfile da desgraça e miséria humanas,que a sociedade procurava ignorar,mas que era uma realidade perfeitamente palpável,naquelas noites de vígilia!Mas mais grave e chocante do que tudo isso,era a chegada, em épocas festivas ou de férias,dos idosos de olhar triste e ternurento,abandonados por tudo e por todos,ávidos de um gesto mais carinhoso,em fim de percurso terreno!Guardo religiosamente alguns desabafos e até confidências,dessas pessoas, já sem força para reagir ou gritar aos sete ventos, a ingratidão familiar e social de que eram vítimas e com a percepção exacta de como se tornavam indesejáveis em qualquer lado!Para eles ,havia normalmente uma maca excedentária,um naco de pão, uma sopa morna e um pouco do carinho que ia sobrando,mas faltava-lhes a esperança de vida para alimentar a alma e impedir que a luz do corredor se apagasse precocemente!Esses, eu nunca vou esquecer!

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