sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Quando no porto de Nacala,terminou para mim e mais alguns sortudos,a viagem de turismo militarizado a bordo do paquete Niassa,alguns companheiros de desdita ficaram a bordo,para desembarcarem mais tarde em Cabo Delgado.Entre eles um amigo de infancia,recém-casado,que na viagem de circum-navegação,passou o tempo a escrever longas páginas á mulher.A escrita só era interrompida para me comunicar repetidamente, que tinha encontro marcado com a morte!É evidente que a par da sensação desagradável e esquisita que me assaltava,procurava transmitir-lhe o melhor que podia e as circunstancias permitiam,que não era assim,que tudo iria rolar sob esferas,que o tempo passava depressa e sei lá mais o quê!Antes de eu subir para o famigerado camião,abraçou-se a mim,chorando copiosamente, garantindo-me que não mais nos voltariamos a ver!Atirei-lhe com todos os palavrões que ainda tinha disponíveis,apesar do consumo durante a viagem,fiz cara de mau e ameacei dar-lhe dois pares de estalos,nem que tivesse de me pôr no bico dos pés.Ficou a imagem de um latagão desfeito em lágrimas,num adeus que nunca mais esqueci!Na longa viagem que me esperava,não consegui afastar essa cena que me comoveu e obrigou a um esforço suplementar,para evitar que a lama resultante do pó ,do suor e das lágrimas,me embotasse os poucos neurónios ainda funcionantes.Não foi preciso esperar muito tempo,para confirmar que o meu amigo tinha toda a razão.Fui avisado via rádio,que tinha sido emboscado e apesar de toda a coragem mais uma vez demonstrada,uma bala estúpida rompeu-lhe a femoral,tornando inuteis todos os esforços para controlar a hemorragia brutal,que haveria de empapar a terra e colorir a sua entrada no céu!Apesar do profundo desgosto,da emoção descontrolada e da tremenda revolta sentida,a verdade é que a guerra,a maldita guerra,não parou!Alguns meses depois,quando quase todos os condutores tinham sido atingidos pelas célebres minas,entrou-me pelo quarto dentro o meu condutor,afirmando que de madrugada estaria ao volante de um veículo,no meio da picada,em coluna de reconhecimento.Também ele tinha a certeza, que no minimo,seria gravemente ferido e como tal pedia-me por tudo que não abandonasse as duas filhas menores,que com a mulher desempregada,passavam dificuldades,enquanto aguardavam o seu regresso.Endureci como pude o olhar,empedreni a alma,engrossei a voz trémula e passei-lhe o responso habitual,em que já nem eu acreditava.Só descansou quando lhe dei a garantia solene e selada com um abraço comovido, que não deixaria de proteger as filhas,caso lhe viesse a acontecer algum precalço.A verdade é que toda a noite revi o filme já conhecido,apenas interrompido pela mensagem matinal,dando conta do rebentamento da mina que o destino reservara para o meu condutor,que estava gravemente ferido!De cabeça perdida,peguei no jeep e na minha G3,até então só usada na caça ás galinhas do mato e tentei ultrapassar a oposição de mentes mais lúcidas e a ordem do comandante que garantia que se necessário me pararia a tiro!Lembro-me que lhe disse e chamei tudo o que me veio á cabeça e devo-lhe o sangue- frio,a paciência e a amizade com que foi ouvindo, impassível,o que na realidade não merecia.Umas horas depois,encharcámos em cerveja o mal-entendido da manhã.Foi já amparados um ao outro,de voz empastada e olhos piscos,que recebemos a notícia de que afinal o Jorge estava estável,á espera de evacuação para Lisboa,onde seguramente mulher e filhas o ajudariam a recuperarDormi profundamente e até a osga fez horas extraordinárias para que os mosquitos não me mordessem!Ao acordar,percebi que tinha ganho mais um amigo.Pouco tempo depois fui louvado pelo Comando Militar da Região,por sugestão do homem que chegou a ameaçar dar-me um tiro!Quero crer que só a monumental ressaca do dia seguinte,justificou a sua iniciativa.Estes são dois exemplos dos muitos que poderia citar.Dois homens de juventude ao peito,mobilizados para uma guerra estúpida,na defesa de uma soberania que se confundia com o interesse do capital,resguardado na capital do Império!Os amigos e descendentes eram estratégicamente colocados em Timor, São Tomé ou em última análise,nas cosmopolitas Luanda,Beira ou Lourenço Marques,numa santa guerra,regada com champanhe e intensamente sentida no aroma dos charutos cubanos,fumados nas esplanadas á beira -mar plantadas!Os outros, eram suficientes para conter um inimigo mais ou menos imaginário,sem qualquer hipótese de se aproximar do território da sua guerra.Os outros,os que escaparam,são os mesmos que a sociedade actual,por total ignorância,vota ao desprezo.Incómodos para tudo e para todos,teimam de vez em quando em pôr a bóina dos Comandos ou outras,tentando disfarçar mazelas e mágoas,fazendo questão de lembrar que resistem e estão vivos e que mereciam o reconhecimento de uma Nação,que teima em os ignorar,sob a batuta do capital, agora descansado e resguardado,nada disposto a reconhecer a dívida monumental que têm em relação a eles.Alguns na miséria,outros irremediávelmente traumatizados de corpo e alma,a maior parte mobilizados para morrer o mais depressa possível e de preferência na clandestinidade,já que a missão só estará concluida quando o último herói desaparecer!Será que ninguém sente vergonha?Será que a ninguém pesa a consciência?Onde está a solidariedade apregoada aos sete ventos,por politicos profissionalizados ou pelos movimentos pela paz e concórdia que abundam no planeta?Pessoalmente não entendo porque se defendem sobreiros,protejem lobos e cordeiros,se publicitam acções politico-sociais e se esquecem esses homens corajosos, que um dia foram empurrados para uma guerra que não fomentaram e que agora vão morrendo á espera da justiça que nunca vai chegar.Quem me dera chegar ao poder!!!

Sem comentários:

Enviar um comentário