sexta-feira, 24 de setembro de 2010

SERVIÇO DE URGÊNCIA

Proliferam as séries televisivas sobre os serviços de urgência,com casos clinicos programados de acordo com a sensibilidade e emotividade das plateias,exageradamente romanceados e «sexualizados»,transmitindo uma imagem deturpada do que é na realidade um Serviço de Urgência!Eu, como tantos outros,trabalhei durante muitos anos na Urgência do Hospital de São José,para onde era destacado uma vez por semana,cumprindo vinte e quatro horas de serviço,tão desgastante quanto rentável em termos de satisfação pessoal e aprendizagem permanente e real,à custa de uma saudável tradição que os mais velhos respeitavam, ao transmitir os seus conhecimentos. Independentemente das amizades geradas pela solidariedade e espírito de grupo existente e patente em situações mais delicadas,a Urgência,ou melhor,o Banco de São José,era uma verdadeira escola de ciencia e de virtudes,comandada pelo Cirurgião-chefe,personagem quase mítica,que para chegar áquela posição,tinha tido de passar pelo crivo de exigentíssimos concursos,demonstrando os conhecimentos técnicos, capacidade de chefia e bom-senso clínico,garantia de potencial na resolução dos problemas inerentes a um serviço de urgência.As suas ordens eram integralmente respeitadas e a sua omnipresença era reconfortante e sinónimo de ajuda nunca negada.A visita aos doentes internados,era feita várias vezes ao dia e sempre que um caso mais raro ou de mais díficil diagnóstico era detectado,mobilizavam-se os internos mais novos para a história clínica de caras,discutida na enfermaria e dissecada no recato do quarto do cirurgião,onde normalmente o infeliz historiador, levava autênticos arraiais de «porrada científica»!Foi à custa de uma cena desse género,em que eu fui o bombo da festa,que estou em condições de quase garantir que nunca mais deixarei de equacionar o diagnóstico de trombose da mesentérica!O trabalho era árduo e estendia-se dos balcões de atendimento,à sala de observação,às salas de operações,passando pela pequena cirurgia,onde todos aprendiam os nós cirúrgicos e as suturas bem coaptadas.O afluxo de doentes, por vezes asfixiante,ia diminuindo á medida que a noite avançava,permitindo que à uma da manhã o vela entrasse de serviço,com a missão quase impossível de aguentar todas as secções,até às oito horas,enquanto a outra malta se dirigia para a velha sala de jantar.A par dos magníficos bifes,preparados carinhosamente e apimentados pelas tradicionais piadas das velhas empregadas,tinha lugar uma troca de impressões colectiva e a discussão dos casos clínicos mais relevantes.Nós, os mais novos, quase extasiados com tanta ciência posta na mesa,bebíamos sôfregamente os ensinamentos que nos iriam ser úteis para toda a vida!A«aula» terminava normalmente com um período reservado á cultura geral,ás novidades sociais, políticas e profissionais e também aos mexericos e anedotas,responsáveis por sonoras gargalhadas,que se prolongavam até aos quartos,onde merecidamente e sempre que possível,retemperávamos energias.Esta saudável e rotinada tradição,viria a ter fim,quando em pleno Abril democrático,os maqueiros e empregados auxiliares,num acto de pura libertinagem,invadiram e tomaram posse da velha sala.Assumo sem qualquer problema,o tremendo desgosto que senti e a revolta que quase ia pondo em causa os princípios democráticos em que sempre acreditei.É que ao contrário da euforia daquelas revolucionárias criaturas,iludidas pelo famoso «poder popular»,eu tinha a certeza que acabara naquele momento, sem honra ou benefício para ninguém,a tradição,a mística e a função didáctica,salvaguardadas ao longo dos anos e de várias gerações!Assim aconteceu!A sala passou a bar,o velho relógio desapareceu e as estruturas foram progressivamente alteradas.Até a chefia do respeitado Cirurgião,se diluiu por vários chefes das especialidades,alijando-se responsabilidades,onde cada um tentava puxar as brasas ás suas sardinhas e as sardinhas eram muito mais que as brasas!Enquanto chefiei uma èquipe de Neurocirurgia,na Urgência,fomentei reuniões para discussão de casos clínicos e apresentação de temas de interesse colectivo,escolhidos préviamente.Embora tenha sido reconhecida utilidade a essa iniciativa,a verdade é que lhes faltou sempre o ambiente da velha sala de jantar,o peso da tradição quase centenária,o carisma do Cirurgião-Chefe e o sabor dos bifes da Carminda!

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