quarta-feira, 8 de setembro de 2010

VIAGEM PARA A GUERRA

A polémica instalou-se quando o António Lobo Antunes,entendeu falar sobre a Guerra Colonial com algum exagero,depois transformado em ficção, a bem da verdade,da Instituição Militar e até da Nação!Levantou-se um coro de indignação dos militares mais graduados,relíquias de uma guerra que pouco ou nada dignificou o nosso País,onde, quer se queira quer não,houve exageros,atropelos e abusos de parte a parte,que não vale a pena tentar escamotear,á custa de prometidas bofetadas e outras sevícias, apregoadas aos sete ventos!Tambem eu fui parar á guerra!Tambem eu a vivi as suas múltiplas facetas,naturalmente melhores umas que outras.Na véspera de Natal recebi uma mensagem,dando conta da minha mobilização,com viagem de barco e camarote já reservado para os primeiros dias de Janeiro.Deveria tomar as devidas providencias,para que na hora da partida tudo estivesse em ordem,bem ataviado,de despedidas feitas e com a garantia da promoção a Alferes-Milíciano Médico,no momento em que desse entrada no barco.Na data e hora marcada,meteram-me no paquete Niassa,com mais dez colegas e cerca de oitocentos militares de outros ramos,distribuidos pelos camarotes ou amontoados nos porões,ultrapassando a pequena contrariedade da lotação do velho barco ser apenas de quatrocentas pessoas!Libertadas as amarras e levantada âncora,0 cais foi ficando lentamente para trás,á custa de delicadas manobras,que passavam despercebidas,perante a profunda tristeza e incerteza que nos enchia a alma.Do cais escorriam lágrimas da família e amigos,que se diluiam nas águas do Tejo, agitadas pelo movimento da hélice.Á medida que o barco se afastava e se acertavam azimutes,ficavam mais longe os braços que nos acenavam,sem certeza de alguma vez podermos voltar a cair neles.A saudade apareceu rápidamente e a angústia instalou-se em força,condicionada pelo ambiente de profunda tristeza e incerteza ,que se vivia a bordo.Era o inicio da longa epopeia de vinte e nove dias de navegação atípica,com algumas paragens preocupantes no meio do oceano,fugindo sempre da costa africana,numa bolina que parecia não ter fim!Rezámos a todos os Deuses do mar,para que não houvesse tempestade que pudesse pôr em causa a estrutura fragilizada e sobrecarregada do barco,ou provocasse enjôos e os consequentes vómitos, num porão que tresandava ao cheiro misto de humanidade e munições.Passado o equador, entrámos no hemisfério sul,cada vez mais carregados de duvidas,cansados de mar,isolados de tudo e de todos e cheios de saudade,que nem os golfinhos que faziam questão de nos acompanhar ou os peixes voadores que batiam no casco,conseguiam atenuar.Dobrado o cabo das nossas tormentas,uma breve escala em Lourenço Marques para o discurso de boas vindas do Governador e de boa guerra,do Comandante Militar.Após mais dias de navegação desembarque em Nacala.Sem tempo para recuperar o equilibrio perdido na longa viagem,fomos de imediato enfiados e empacotados,com armas e bagagens,na caixa aberta de gigantesca BerlietEstavam á nossa espera, duzentos quilómetros, até Nampula,debaixo de um calor tórrido que aquecia a poeira e evaporava os gases do escape.Algumas horas depois,a heróica chegada á messe de Nampula,encharcados em suor,carregados de pó e de esqueleto todo partido!Uns dias de espera,valeram uma guia de marcha para Tete,na altura a zona mais problemática em termos de guerrilha.Chegado á capital da guerra e do calor,meteram-me num bimotor pilotado pelo heróico Craveiro,homem de sorriso triste e poucas falas,que mais tarde tarde se viria a revelar imprescinível,na missão que me aguardava.Algum tempo depois de levantar vôo,atrevi-me a perguntar onde estava Casula,sede do Batalhão para onde tinha sido destacado.O experiente Craveiro,apontava com o dedo num esforço inglório para me mostrar a vista aérea de meia dúzia de barracões de zinco,onde após aterrar numa magnifica pista de terra batida ,com cerca de duzentos metros,fui recebido e instalado principescamente num quarto, a meias com o Capelão,chão de cimento,telhado de zinco quente e porta de madeira com mosquiteiro de rede.Um luxo, só partilhado por um simpático rato e uma eficaz osga,companheiros fiéis das longas noites quentes.Logo na primeira noite fomos surpreendidos por algumas rajadas de metralhadora,que me pregaram literalmente ao chão,obrigaram o padre a apelar insistentemente á Virgem Maria,assustaram o rato que passou desvairado por nós e a osga de barriga atestada de mosquitos,que se deixou cair pesadamente no chão de cimento!Tinha começado ali a missão,que iria durar longos meses,carregada de episódios que tentarei ir descrevendo,onde a loucura,o humanismo,o medo e algum heroísmo,tinham denominador comum,garantia segura de amizade,justificação permanente para alguns desvios da normalidade,alívio precoce de consciências pesadas.Só então percebi que tinha chegado ao coração da guerra!

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