quarta-feira, 1 de setembro de 2010

CORREIO, LADEIRAS, ARISTIDES E OUTROS

A vida nas aldeias,tem situações e personagens ímpares,que deixam marcas profundas e perduram ao longo do tempo,por vezes recriadas pela imaginação,mas quase sempre recordadas com saudade dolorosa,consequente á noção exacta que é impossivel voltar aos velhos tempos.Isto tudo porque me lembrei agora do desgraçado carteiro,correndo as aldeias de lés a lés,montado numa bicicleta presa por arames,mas preparada para o transporte de todo o tipo de notícias e encomendas,num grande e desgastado saco de couro.Alvo referenciado e preferido dos cães das redondezas,que provávelmente embirravam com a farda,não poucas vezes teve que dar ás de Vila Diogo,sob pena de levar nas pernas ou nas nádegas as marcas dos dentes do ágil e desvairado Rájá,fox-terrier comprado na capital do reino,transportado em cesto de vime no comboio até Aveiro e que se adaptou extraordináriamente bem á vida do campo.Marcou pontos durante muitos anos não só pela sua dedicação,mas tambem pela velocidade e agilidade com que fazia gincana entre os canteiros do jardim,ou perseguia tudo o que tivesse penas para desespero da Deolinda,defensora primária e intransigente, de «porcos com sua licença»,galinhas,patos,perús e periquitos!Era tambem ela uma criatura maravilhosa,limitada pela sua simplicidade e ingenuidade,integrada desde sempre na mobilia da casa,dedicada aos patrões e aos «meninos »até ás ultimas consequencias.Guardiã do templo quando a familia estava em S.Tomé,mantinha a apetência e o prazer de nos servir magnificos cozidos á portuguesa,ou ovos mexidos, muitas vezes comidos já a caminho do apiadeiro!Santa e saudosa criatura,de coração grande e alma pura,lágrima fácil e sorriso aberto de olhos fechados.Apenas o senão de embirrar com o Ladeiras,latagão da Carregosa,vendedor de sardinhas, fanecas e carapaus de olhos vidrados e revirados,perseguidos e desejados por atléticas varejeiras,tranportados em canastra fixada á bicicleta.Chapéu de abas na cabeça,molas de roupa nas calças para evitar o óleo da corrente,anunciava com o seu vozeirão e á cornetada,á senhora Deolinda,a presença do fresquissimo pescado,pronto a grelhar no fogareiro a carvão.Para além de outros factores mais ou menos íntimos,esta desfaçatez,desencadeava uma idiossincrasia mal disfarçada e nunca ultrapassada.Relação de amor-ódio mal entendida,que poderia muito bem ter sido aproveitada pelo senhor Magalhães de Fermentões,para escrever um romance,no intervalo e sequência das habituais crónicas na Imprensa Regional.Para além das notícias sociais,não poucas vezes divagava sobre as condições climatéricas ,concluindo e deduzindo se «o ano viria a ser bom para o caroço».Personagem respeitável e respeitada,de cultura acima da média regional,amigo da família e presença assidua na Missa dominical,quase sempre ao nosso lado e de uma pobre alma supostamente pecadora,que chorava desalmadamente cada vez que a campaínha tocava a Santos,o sapateiro-sacristão agredia o bronze dos sinos da igreja,ou o coro que integrava as vozes mais admiradas da região, acompanhadas pelo violino do Tio Zé,se esganiçava de olhos fechados, como os galos nos cânticos matinais!Finalmente uma justa referência ao Ti Aristides,moleiro de profissão,de estatura elevada e estatuto respeitado,passada larga e pesada,mãos e rosto enfarinhados e dono de experiente mula,que transportava no lombo,por caminhos mil vezes percorridos,pesados sacos de farinha de milho.Mula e moleiro,eram visitas assíduas da casa de Lanhezes e tambem responsáveis por cenas caricatas,repetidas sistemáticamente.Em dias de calor tórrido, chegava o velho Aristides ao portão,tirava a farinha para levar á senhora Deolinda e aí deixava solta, a cansada,carregada e encalorada mula.Mal o moleiro virava a esquina da casa,o majestoso exemplar avançava rápidamente para o relvado,onde se espojava com as quatro patas para o ar,espalhando farinha,limpando as narinas na relva e não se coibindo de esvaziar a bexiga antes de regressar ao portão!O desespero dos mais velhos ,contrastava com a satisfação da mula e a risota dos mais novos,que afirmavam perentóriamente que a mula do Ti Aristides «jogava á quarta»,expressão que ainda hoje integra o nosso vocabulário.Estas são algumas personagens que pelas suas caracteristicas marcaram uma época na pacata aldeia.Já todos partiram deste mundo,mas consta que o Ladeiras continua a vender peixe a todos os Santos,o Aristides vai acumulando sacos de farinha para o que der e vier e a Deolinda reza e chora todos os dias pelos seus meninos!Que a Paz do Senhor esteja com todos!

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