terça-feira, 14 de setembro de 2010

TRANSMONTANOS

Para lá do Marão mandam os que lá estão!Provérbio antigo,mas definição perfeita das caracteristicas únicas das gentes de Trás-os Montes.Desde muito novo,que em Setembro e após um mês de praia,não havia alternativa á ida para Vilarinho Das Paranheiras,pequena aldeia transmontana,onde chegávamos muitas horas depois da partida e após heroica travessia de quilómetros de estradas de dois sentidos, que pareciam não ter fim.Saudávamos a chegada ao Alto do Espinho,no Marão,onde terminava a subida cheia de dificuldades para um automóvel aposentado,carregado de pessoas e malas,com paragem obrigatória em todas as fontes de água limpida e fresca da montanha, para saciar um radiador fumegante!Mais tarde,a minha costela transmontana assinalava imperterivelmente a chegada á curva da velha estrada,onde era possível ver a casa no meio da Quinta,chamada do Calvário,pela cruz que os meus Avós transportaram durante anos,para a tornarem numa realidade.Á chegada era uma sensação indescrítivel,uma alegria mal contida e uma excitação só acalmada noite dentro,quando sentados no terraço em noites de Lua Cheia recortada na montanha,ouviamos o silêncio, apenas violado pelo cântico dos grilos,das rãs e relas do rio Tâmega,ou pelo rouxinol que fazia questão de marcar presença.As estrelas brilhavam mais,as constelações deixavam-se identificar fácilmente,a estrada de Santiago apontava o caminho de Compostela.O sono repunha as energias consumidas,até que o canto de melros e pardais,nos despertava para o ar puro da montanha,ainda envolta no nevoeiro matinal.Ouvia-se então a chiadeira tipica dos carros de bois,com eixos e suspensão de madeira,arrastados por bois de capacete na cabeça,suportando a canga normalmente enfeitada com a giesta ou alecrim dos montes!A azáfama começava muito cedo,com a reunião de trabalhadores á porta da monumental adega,onde para além de serem distribuidas tarefas,o caseiro lhes« matava o bicho»,com copos de aguardente,que aqueciam a alma e davam calorias ao corpo precocemente desgastado pela vida dura e rude,consequente a um trabalho quase forçado,única alternativa de sobrevivencia naquele reino das fragas.O Alexandre,de centro de gravidade rebaixado,boina na cabeça,sorriso nos lábios,na frente dos bois,dava a ordem de partida:«Ei boi Ei!».O Maximino de olhar miasténico e fendas palpebrais assimétricas,por ptose mal esclarecida,marcava posição na caminhada até ás terras do rio,mostrando em permanência os dentes ralos e amarelos,num sorriso simplório e automatizado.A seguir o Adelino,0 António Baril e muitos outros,em grupo de piadas e provocações mútuas.As operações eram comandadas e coordenadas pelo caseiro,personagem respeitada por todos,na linha do velho Zorra,pioneiro dos feitores,de bigode farfalhudo e voz grossa,homem honrado,amigo do seu amigo e fiel ao seu patrão.Contam-se histórias sem fim do velho feitor,todas elas consolidando a imagem lendária,ainda hoje recordada e venerada.Era comentado o seu regresso de viagem ao Porto,no comboio que durante anos apitou no vale e incendiou os montes.Adormeceu ao som da melodia dos carris e quando acordou a estação de Vilarinho já ficara para trás!Nada de inultrapassável e como tal a rápida resolução de saltar em andamento.com armas e bagagens para a berma da linha!Só que o salto não correu tão bem como desejado.As costelas partidas e horas de gritos de socorro,estatelado na vinha,foram factura, elevada para gesto tão destemido.A lavagem dos toneis era feita com água quente e enxofre.Alguns, enormes, permitiam a entrada de um trabalhador,antes de se fechar a portinhola.Quando a situação se tornava insustentável ouviam-se os gritos surdos do infeliz encarcerado e a resposta filosófica do Zorra: «Continua,se ainda pias, é porque estás vivo!»Apesar de tudo, consta que estas cenas e outras do género terminaram sempre sem problemas.Na época das vindimas,vinham grupos de fora ajudar e alegrar o trabalho, com velhas cantigas que apesar de nem sempre afinadas, minimizavam o esforço e refrescavam os ares.Quando as dornas regressavam vazias ,tinha acabado a vindima,mas mantinha-se vivo o desejo de voltar no próximo ano.As desfolhadas eram feitas á noite,na eira iluminada por candieiros de petóleo,,numa semi-escuridão que fomentava o roubo de um beijo ás moçoilas de face corada e hormonas á flôr da pele,ou juras de amor eterno,embaladas pelo som de desgastadas concertinas, marcando o tom de vozes roucas e desafinadas.O milho-rei raras vezes aparecia,o que não impediu que alguns namôros tivessem nascido como por encanto,do meio das espigas.Era assim a vida na Quinta!Mais tarde quando o maldito DR me passou a perseguir por todo o lado,o Maximino,salutarmente simples e ingénuo,aproximava-se de mim ,tirava a boina e dizia:«O menino,senhor doutor Carlinhos, não se importa de me dar um cigarro?»Escusado será dizer que o cigarro se multiplicava na razão directa de uma amizade saudável e que o tempo viria a confirmar indestrutível.Passeios montado numa égua carregada de vicíos,que em direcção a Vidago não saía do passo lento,mas que invertido o rumo,partia á desfilada,em galope desenfreado que só parava no estábulo!É evidente que o animal tinha toda a razão,pois bem me lembro,salvaguardando as espécies,do esforço necessário para subir de bicicleta a estrada inclinada até Vilela do Tâmega,para depois a descer vertiginosamente,em disputa com o meu irmão João e com os primos Matateus nos quadros!Para além destas e outras recordações,fica a imagem daquela boa gente,pobre,humilde que nem a fome os impedia de oferecerem um pouco de chouriço ou um naco da brôa,que as mulheres lhes levavam religiosamente ao meio-dia, esperando o seu regresso á sombra do centenário sobreiro.Muitas vezes roídos de preocupações,mas com um caracter,um orgulho próprio e uma dignidade,notáveis!São estas as caracteristicas genéticas e imunes ás mutações ,que definem os transmontanos.Tenho que estar agradecido a todos eles,pela ajuda na moldagem do meu carácter e pela magnifica lição de vida , que agora recordo sentado na fraga,no alto da quinta,tentando recuperar o chiar dos carros de bois orientados pelo Alexandre e a expressão feliz do«Saguê»Maximino,fumando uma cigarrada!As estrelas continuam lá,mas a lua brilha menos e os grilos,rãs e relas estão mais envergonhados e menos exuberantes nas suas cantorias nocturnas,tambem eles desgastados pelo tempo e convencidos,que o passado nunca mais será presente!

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